Bastaria sair a pedalar em grupo pelo Norte e arredores, mas a oportunidade de participar sem grandes custos num BRM para todos nós desconhecido, menos para o Fernando, randonneur de muitos brevets, foi um novo desafio ao qual não resistimos. Para mim era mais uma dessas extensas etapas de largas horas sentado no selim a pedalar, mas esta teria outros condimentos bem mais apetecíveis.
E assim, sete amigalhaços que se conheceram nisto das biclas, lá se juntaram e foram num comboio regional, madrugada afora, para Vila Franca de Xira participar no L’Antique 200, organizado pelos Randonneurs Portugal. Tal como disse o Fernando “obnibulados por uma noite de comboio… mas a hora biológica e o frisson da partida fizeram esquecer o pormenor do sono”, foi sem pregar olho a noite inteira que bem cedinho chegamos a Vila Franca para o depart. Depois de engolir o pequeno-almoço, aliviar o peso do carrego, que o Jacinto bem agradeceu, foi vestir à pressa o equipamento, fazer o brieffing, e lá fomos pedalar como se não houvesse amanhã….
Pedalou-se depressa, devagar, ainda mais devagar, allure libre, paramos muitas vezes, nos postos de controlo, outras vezes no meio da estrada para tirar fotografias ou simplesmente para olhar à volta, relaxar as pernas e trincar uma bucha. É claro que depois, para recuperar tempo, pedalamos depressa, numa velocidade muito superior às anteriores. Com o Tiago a fazer de lebre, foi de tirar o fôlego.
A última vez que tinha vagueado pelo Ribatejo foi há coisa de 25 anos, andava eu a marchar no quartel de Tancos. Desejando voltar a um dos meus lugares míticos, rever o Tejo, o calor do sol a entrar nos vales, cenários de cortar a respiração, sensações únicas das mais belas paisagens do país, o melhor pretexto foi pedalar por estradas ensolaradas e rolantes da planície ribatejana. A minha expectativa de passar por lá era muito grande, já que durante uma fase marcante da minha vida ali andei a marcar passo. Foi difícil reconhecer o quartel, ao abandono, rendido à passagem dos anos. Parei e prostrei-me em frente à porta de armas, de onde outrora costumava sair nas “berliets” de goela seca, e acreditei, enfim, que estava ali. De bicicleta!
O sol de inverno e a boa companhia foram o antídoto perfeito para combater o forte vento vindo de Norte e que constante nos batia na cara. Estorvava o empenho mas não buliu a vontade. Se eu podia levar uma bicicleta mais amiga dos meus joelhos? Podia, mas não seria a mesma coisa! Sendo um brevet condizente em trazer à memória o espírito e as condições que os Randonneurs do início do sec. XX tinham de superar quando pedalavam para longe, só mesmo na Alteza estaria ao nível de tal aventura. E um furo, na recta final, no breu da noite, reparado com a prestimosa ajuda do Victor, veio ainda acrescentar mais emoção ao acontecimento.
Nesta viagem, nós adicionamos uma terceira roda, por assim dizer: o espírito de grupo. Em todo o caminho estivemos juntos. Foi, possivelmente, um dos passeios mais interessantes que já pedalei. Antigas estradas com longos quilómetros de alcatrão esburacado, pavimentadas de terra batida, lamacentas, e depois uma prova clássica sem pavé não é clássica. Resumidamente, uns bons quilómetros a sentir os dentes e o esqueleto a ranger. As estradas são tranquilas, em grande parte do percurso, excepto em alguns trechos de estradas nacionais, compensados ao atravessar pacatas vilas onde a bicicleta é parte do cenário, fundamental modo de vida.
Veículos privados de duas rodas que são deixados no descanso, na borda do passeio, encostadas à porta de casa, de uma forma tão natural que até dá inveja. Crianças, mulheres e homens que embalados pedalam de um lado e para o outro, sorrindo a quem passa, acenando e cumprimentando, guiando com uma mão enquanto na outra, firme, se segura uma garrafa do mais puro néctar.
A rota levou-nos de Vila Franca de Xira a Santarém, Golegã, Vila Nova da Barquinha, Tancos, Constância, meia volta e força, para a banda sul do Tejo por Chamusca, Alpiarça, Porto de Muge, de novo para a margem norte do rio e o percurso inverso até Vila Franca de Xira. Um total de 211 km (fora os que se fizeram a mais à custa de um ou outro desvio acidental de percurso), lugares com significado histórico, caminhos, bicicletas, chuviscos, sol, lezírias, vento, caminhos, quintas, memórias, castelo, pontes, noite, estrelas, luzes, frio, obstáculos, pontes, carros, comboios… pelo simples prazer de pedalar.
O regresso ao Porto fez-se no dia seguinte, de comboio, claro está, aliás, em quatro comboios, pois a necessidade de transportar bicicletas obriga-nos a recorrer às composições de serviço regional e ao transbordo, como se fizéssemos uma viagem intercontinental, o que só complica mas que não esmorece a nossa caturrice. Venha de lá o próximo.
Olá Paulo,
relato inspirador ainda por cima na minha região, o tom nostálgico deixou-me com arrepios.
Venho o próximo para eu partipicar (já comecei a tratar da papelada)
um abraço
boas pedaladas
José Mota
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