no L’Antique 200, dez anos depois da nossa estreia

Um Brevet Randonneur Mondial tem uma distância a pedalar e tem um mote. No caso do brevet inaugural do ano dos Randonneurs Portugal, o L’Antique 200 é um evento de 200 e tal quilómetros com um nome a condizer, o qual merece ser pedalado numa bicicleta a condizer. Uma bicicleta à antiga.

Os pneus de Sua Alteza ainda estão enlameados de fresco e já sai o relatório e contas de mais uma aventura por estradas de outros tempos.

Nas três edições que pedalei ao longo do Tejo, pelas planícies ribatejanas, levei sempre uma bicicleta diferente e todas elas duras como o aço. Em 2013, na edição da minha estreia, Sua Alteza foi a escolhida. Veículo básico e sem mudanças de humor, esta bicicleta é a pura reminiscência do que os ciclistas tinham para pedalar nos primórdios da velocipedia.  

Desejando voltar a um dos meus lugares míticos, rever o Tejo, a luz do sol a afastar as nuvens e a colorir a planície, clarear panoramicas de cortar a respiração, aquecer o corpo e o coração, o melhor pretexto foi pedalar por estradas ensolaradas e rolantes da lezíria ribatejana.  O dia estava um mimo, mas uma morrinha persistia em nos abençoar o depart.

O sol de inverno e a boa companhia foram o antídoto perfeito para combater o forte vento vindo de Norte e que constante nos batia na cara. Mantive-me no grupo da frente e fiz jus à curtição que é pedalar em pelotão. Aqui e ali, às custas da potência alheia, fui aproveitando o corta-vento da forte Nortada que também fez questão e veio participar neste brevet.

A aragem ia frisando as orelhas e para meu benefício imperava a boa colaboração e disposição no minipelotão. Depois de um momento pés na lama, lentamente fomos aquecendo os motores. Desta vez não tive a companhia dos meus amigos habituais. Por assim dizer tive de me enquadrar com outros randonneurs com estilos e máquinas radicalmente diferentes, aproveitando o andamento com participantes provenientes de outras nacionalidades. Ao que me disserem eramos uns sessenta randonneurs a pedalar no mesmo sentido.

Mais uma vez, teimosamente sem o recurso à geringonça indicadora do caminho, recorri às minhas memórias e à cabula preparada para o efeito. Na aproximação de Santarém segui o instinto mental de virar à direita e subitamente sinto-me só, a escalar e depois a caminhar pela habitual subida às portas da cidade escalabitana, porque não dei ouvidos ao aviso no briefing matinal. Foi por mera casualidade que fui “apanhado” pelo Miranda e juntos entramos no jardim das Portas do Sol para o pit stop e para mais uma vez desfrutar de uma das vistas mais bonitas sobre o Tejo.

Prossegui só, por minha conta e risco desde aí, ao meu ritmo, em boa cadência contra a Nortada que não facilitava em nada a minha progressão pelos campos desabrigados. Golegã havia ficado para trás e quando seguia numa daquelas rectas intermináveis vislumbrei os coletes amarelos de um grupeto. Na Azinhaga sentei-me ao lado de José Saramago que me segredou ao ouvido, que se tivesse viajado nesta bicicleta, da obra “Viajens de Portugal” teria escrito mais dois ou três calhamaços.

Voltei para a lezíria, para o vento contra, e a perceber que lentamente me aproximava do grupeto. Acho que tiveram pena de mim, ali sozinho contra o vento e esperaram por mim. Tenho a certeza que não foi por isso, mas isso agora também não interessa nada. Juntos chegamos à Quinta da Cardiga um dos postos de controlo tradicionais do L’Antique.

Até aqui foram bons quilómetros a sentir os dentes e o esqueleto a ranger do mau estado do alcatrão. Estradas tranquilas, em grande parte do percurso, excepto em alguns trechos de estradas nacionais, compensados ao atravessar pacatas vilas onde a bicicleta é parte do cenário, fundamental modo de vida. De novo a rodar o único pedaleiro, não tardou que tivéssemos de borrar os pneus na lama, no famoso 1,5 km de terra mais enlameada que batida do L’Antique. Pura emoção!

Recuperado o asfalto fofinho, depois de sair de Vila Nova da Barquinha passamos por Tancos. A minha expectativa de passar novamente ao largo do Casal do Pote, pequeno aquartelamento do Regimento de Engenharia onde fiz a recruta, era muita já que durante uma fase marcante da minha vida ali andei a marcar passo. Tudo como dantes no quartel… rendido ao abandono e à passagem dos anos.

Cheguei a Constância para o carimbo, para a sopa e degustar a boa da bifaninha, muito antes da hora que havia previsto e, como tal, deu pra relaxar, telefonar, actualizar o Instagram e tudo. Na retoma da estrada, não querendo que o Camões ficasse chateado, Sua Alteza deixou-se fotografar com o poeta na premissa que eu a levasse lá prá Ilha dos Amores.

Eu ia em plena sornice pela ondulante estrada nacional, curtindo o momento e deixando que o pelotão das bicicletas modernas com desviadores XPTO fugisse, desviei e fui ao miradouro (ou será miratejo!) mirar o belo Castelo de Almourol. Assim, o soldadinho de chumbo voltou a conquistar o castelo, mesmo que não se tenha atrevido a atravessar o Tejo.

À passagem pela Chamusca, onde à minha visão de uma máquina infernal, que diz que é um Locomóvel mas de “móvel” tem pouco, quanto ao “Loco” Sua Alteza apontou-me a manete. Um pouquinho mais à frente saí da estrada nacional para voltar às estradinhas esburacadas pela lezíria ribatejana.

De novo as antigas estradas, caminhos rurais, de cabras ou lá o aquilo é, com longos quilómetros de alcatrão esburacado, pavimentadas de terra batida, lamacentas. Diria um velho amigo que uma prova clássica sem pavé não é clássica, não é? Mil vezes o paralelo do que isto. O vento lateral fazia-se sentir, especialmente à passagem pelos campos desabrigados, mas na maior parte do tempo a nortada estava pelas costas, o que, desta vez, até ia ajudando bastante a minha progressão.

Em Alpiarça tive o cuidado de não falhar o posto de controle que passou a estar colocado de novo num local sossegado, ao largo de uma pequena barragem, mas não sem antes me deter junto ao monumento em honra dos ciclistas e fazer novo registo fotográfico.

Já nos últimos minutos de luz natural e após a passagem pela estreita e tridimensional Ponte Rainha D. Amélia, depois de uma paragem para reforço alimentar e do vestuário, foi sob um lusco-fusco fascinante, com a boca bem fechada a levar com nuvens de mosquitos nas fuças, que pedalei a bom pedalar os trinta e tal quilómetros que me separavam da meta.

Este L’ Antique, nas três participações anteriores também, mas particularmente este Brevet, soube-me mesmo bem e soube tão bem chegar ao final e ser recebido com este belo sorriso. Obrigado Carla.

Volvidos estes anos desde o meu primeiro brevet o que mudou? Bem, estou dez anos mais velho, seguramente. Estou bem mais magro, mas isso é evidente. E comum com aquela que me transportou, e ainda me transporta, Sua Alteza Velo Invicta, estamos ambos mais carunchosos, mais ferrugentos, mas mais experientes.

Este Brevet também é teu Amigo Jacinto.

Aqui o registo no Strava e… Até Breve(t) pessoal.

Sobre paulofski

Na bicicleta. Aquilo que hoje é a minha realidade e um benefício extraordinário, eu só aprendi aos 6 anos, para deixar aos 18 e voltar a ela para me aventurar aos 40. Aos poucos fui conquistando a afeição das amigas do ambiente e o resto, bem, o resto é paisagem e absorver todo o prazer que as minhas bicicletas me têm proporcionado.
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2 respostas a no L’Antique 200, dez anos depois da nossa estreia

  1. Ângela Gouveia diz:

    Que leitura maravilhosa e inspiradora.
    A celebração do prazer de pedalar sem pressa, a bicicleta que resiste ao tempo e às modas e as fotos a destacar os detalhes e percalços do caminho que é mais importante que o destino.
    Apetece mesmo pegar na bicicleta e partir.
    Obrigada pela partilha
    Bons brevets

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  2. paulofski diz:

    Obrigado pelas tuas palavras Angela. Volta sempre.

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apenas pedalar ao nosso ritmo.