Era uma vez uma bicicleta que estava à venda num site de vendas online. No anúncio, a solicitação “pela melhor oferta”, bem como a qualidade do material, incutiu-me a curiosidade suficiente para originar uma licitação. Não porque estivesse à procura de outra bicicleta, já lá tinha cinco, mas, como quem não arrisca não petisca, pensei que seria uma possibilidade juntar aquela MILF de pedais e atraentes predicados ao meu hárem. Após aturadas negociações, algum regateio, e porque seria o único pretendente à bicha inteira, assim tal como estava, no final do dia a beldade foi-me entregue ao domicílio. Faltava um test ride e justificar o investimento à patroa!
E foi assim, sem estar a contar, que outra bicicleta entrou na atafulhada arrecadação. Afinal, qual a razão de comprar aquela bicicleta? Muito simples: a Cósmica, também conhecida por Cosmos, era diferente das outras. Era uma bicicleta clássica, fabricada nos anos oitenta, produto de uma marca nacional com pergaminhos… de Matosinhos. A Cosmos equipou prestigiadas equipas de ciclismo e participou em muitas provas, especialmente na Volta a Portugal. Não sabendo muito da sua história, aquela bicicleta topo de gama, modelo Internacional, foi, em tempos idos, uma “bicicleta de corrida”, assegurou-me o Sr. Joaquim Fonseca, o senhor Cosmos. Não resisti ao charme e encantos de uma bicla da pesada. As cicatrizes no seu elegante quadro de aço eram a prova provada das duras e transpiradas provações que os seus anteriores donos tiveram em cima dela.
Contou-me o anterior dono que depois de a ter trocado por outra jovem, a velhinha bicicleta de corrida estava parada há muito, muito tempo! Nas minhas mãos, competia-me dar-lhe continuidade e vida boa. Nos meus pés, competia-me passeá-la por roteiros conhecidos, levá-la aos lugares mais distantes e fascinantes. Deixou-se de corridas e aos poucos foi ganhando outros atributos. Até os meus amigos se encheram de amores por ela, e o meu filho ia requisitando o brinquedo “novo” para umas idas e voltas à casa dos avós.
Ao longo do tempo foi tendo direito a muitos mimos, tudo com o intuito de a manter bela e mais cómoda para o dono, pois tá claro! Alargou as ancas e ganhou uns quilitos, o que só a tornava mais sexy. Ganhou capacidade de carga, o que lhe conferiu maior autonomia nos passeios de cicloturismo. Transformou-se na minha bicicleta do dia-a-dia, casa-trabalho / trabalho-casa. Em viagens cósmicas de prazer e emoções fortes, nela voei por onde me desse vontade:
Um dia, numa bela manhã de sábado, bem cedinho, pela primeira vez foi visitar as exuberantes estradas do Alto Minho, rodar uns singelos duzentos quilómetros num evento Randonneur Portugal.
Portou-se tão bem que outros e longos passeios ficaram logo prometidos.
Esta ignóbil bisbilhoteira adorava rolar, deslizar suavemente ao despique com o vento, levando-me a conquistar estradas nesta deslumbrante liberdade que é pedalar. Com ela invadi a noite, e foi sob um caminho de estrelas, e um selim desaparafusado, que nela completei 24 horas pedaladas em completa autonomia, concluindo uma Fléche dos Randonneur Portugal.
Outra ocasião, de madrugada, icei-a para o tejadilho da carrinha de um velho amigo. Fomos estrear um brevet 200k promovido pelos Randonneur de Portugal, ao longo do vale vinhateiro do Douro. Ela ficou contente por ter sido a bicla escolhida para o passeio, mas ao mesmo tempo o dono parecia um bocadinho desconfiado, pois sabia que o relevo das estradas durienses seria dureza e beleza.
Altos e baixos, curvas e contra curvas, contornando cada afluente do rio, deu para perceber que isto de bicicletas clássicas e declives acentuados não são para qualquer um.
Sempre que aqui o seu vaidoso proprietário entrava na arrecadação, capacete na cabeça e vestindo roupas esquisitas, a bicicleta cinza e vermelha ficava verde de esperança, pensando sempre que seria a escolhida. Às vezes o seu entusiasmo depressa dava lugar à resignação, pois não era a opção. Mas, ainda mal tinha tido tempo para perceber o que se passava e já estava com ele em cima, rabo no selim e sapatilhas nos pedais.
Na sua garupa cada dia era diferente. A luz era diferente, o tempo era diferente, e nada ficava indiferente ao meu estado de espírito. As cores do Outono, ao lado do rio, ao encontro do sol. Os locais e momentos perfeitos para belíssimas fotografias. Era sem dúvida uma festa para as sensações. Esticar as pernas, o vento nas trombas sentindo a maresia, pedaladas suaves no regresso a casa. Só, e no entanto bem acompanhado. Não era apenas a minha alternativa viável como meio de transporte, sempre foi meio caminho pedalado para amplificar a boa disposição.
Após o expediente, no regresso ao lar, lá vinha o livre pretexto de escolher a rota, a regalia de contemplar o que vem após uma curva. Colorir o horizonte e ficar a ver navios… isto se não estivesse nevoeiro! A bordo desta máquina do tempo, e o tempo tem destas coisas, por vezes parece que nunca mais passa, outras parece que voa. Quem era eu para a contrariar!
A velha Cósmica, clássica estradeira escravizada para todo o serviço, foi de novo convocada para me aturar em mais uma jornada “breveteira” por mais de 200 km.
Serenas pedaladas recheadas de singulares peripécias, desta vez ao longo da verdejante e suave planície ribatejana.
Volta e meia, invade-me um formigueiro nas pernas e estendo os passeios cicloturisticos numa alegre convivência por caminhos desejados. Como qualquer bicicleta tem o dom de satisfazer os meus desejos, esta introdução serve para recordar um percurso que dantes fazia de carro, às vezes de comboio. Assim, em três dias de pura contemplação, na companhia do Jacinto e Alex, fui na Cosmos pedalar até às aldeias dos meus avós, ida e volta, em grande parte ao longo das margens do Douro, ora subindo, ora descendo, por míticas estradas nacionais.
Curtindo umas belas pedaladas durante uns bons dias de férias.
Ao sabor da corrente da Cosmos, e de novo a lado a lado com o Douro, foi no último BRM deste ano que juntos fizemos uma longa viagem. Tal como em outros passeios de grande distância e exigência física, fui aprendendo muito sobre muitas coisas, sobretudo a compreender e entender o que preciso fazer para realizar estes meus devaneios ciclísticos em segurança.
A Cósmica foi amiga, confidente e terapêutica. Levou-me para todo o lado e fez questão de requintar o meu quotidiano. Nela chegava ao trabalho bem relaxado e voltava a casa menos stressado. Sem sobressaltos, passando por lugares tranquilos, saboreando o tempo, superando limites, de um modo simples.
Infelizmente a nossa alegria teve um desfecho aparatoso. Faz uma semana que na minha habitual deslocação para o trabalho, num momento do percurso tive um encontro imediato com o para-choques de um carro. Afortunadamente nada tive, apenas um tendão distorcido que só reclamou passados dois dias. A Cosmos não teve tanta sorte. A sua elegante tubagem Ishiwata cedeu ao impacto e partiu-se em dois.
Este texto de despedida pode parecer lamechas, e é, mas eu tenho a certeza que as bicicletas também têm coração, bem lá dentro aglures no seu quadro. A Cósmica partiu e me deixou de coração partido.
Bonitas histórias… este apego ultrapassa o material é um apego das vivências.
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Belo texto!
Chuif… (limpando a lágrima ao canto do olho) ; )
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Paulo, não chore mais… Há uma Cosmos à sua espera!
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