Dia de brevet, de “randonneurisse”, dia de mais uma agradável viagem pedalada. Saído da hibernação ainda não eram cinco da matina, já sentia no ar o cheiro a aventura e a Primavera. O rendez-vouz para pedalar mais de 200 km pelo Alto Minho estava marcado para as Marinhas, em Esposende. Com os preparativos concluídos de véspera, apenas me faltava vestir o fato de gala, encontrar o Armando, içar as binas para o tejadilho do carro, buscar o Tiago e juntar-me ao restantes amigos: Levi, Sérgio, Jacinto, Ricardo e Fernando.
O aquecimento das gâmbias fez-se ligeiro, pela EN 13 rumo a norte, ao ritmo apertado de um duo suspeito. Transformado o vento de sudoeste em pseudo nortada e as nossas bicicletas em caravelas, emparelhamos cinco randonneurs em biclas de aço, num ritmo infernal para, às portas de Viana do Castelo, se guinar abruptamente para o interior do país. Confesso que estava tão exultante que mal conseguia refrear o ímpeto, massacrando os pedais com toda a força, apenas perturbado em duas ocasiões para travar a marcha, voltar uns metros atrás e apanhar o velocímetro que teimava em soltar-se do guiador. Depois foi uma sofreguidão para reagrupar, malhando no aço da Cósmica bem acima dos 40Km/h com um sorriso doentio no rosto. Aproveitando o vento, que nos empurrou impetuosamente até Ponte de Lima, para inicio de jornada a primeira hora de pedalada foi uma verdadeira loucura. O registo carimbado no cartão amarelo não nos deixa mentir.
Sob um sol preguiçoso, que vinha e que ia, sobre a histórica ponte sobre o rio Lima, em obras e que nos obrigou a apear, à passagem por localidades com nomes curiosos, com aquele ventinho amigo, a monotonia foi zero. Tudo corria muito bem e seguimos já mais calmos, tentando entrosar e adquirir um certo senso de grupo. Acompanhamos a orla do Rio Vez e, mais uma vez, tiramos os sapatos dos pedais para, desta vez, atravessar sem solavancos uma bela ponte medieval, aproveitar a água que brotava fresca de uma fonte e para identificar o duo suspeito: o Alexandre e o Filipe. Fotos e apresentções da praxe, logo estávamos de volta à estrada para a primeira escalada a sério do dia, o Sistelo.
O Minho é lindo, exuberante e mágico. O panorama verdejante dos vales, as casas rústicas de granito, os animais de trabalho ou selvagens a pastar na berma das estradas, o sobe e desce por belas estradas rodeadas de abundantes cascatas, o som e cores da Natureza aliviava-nos a cadência da pedalada, retomando o ritmo ali e acolá, pedalando lado-a-lado, à conversa, até ao momento em que a curva e o declive da estrada nos calava a matraca e aquecia a carcaça. Fazer aquela subida numa bicicleta clássica com andamentos pesados foi um estirão e um privilégio. Sem dar conta dos quilómetros que passavam, as vistas do miradouro do Sistelo foi o retemperar de energias que precisava.
Com as exigências de uma estrada perigosa e a precisar urgentemente de obras, descemos feito doidos. O nosso destino era agora Monção, para a carimbadela do cartãozinho e almoço quente e retemperador. Mesmo após o começo do BRM, a bicicleta do Levi solicitou pela enésima vez a atenção do seu dono. Não pedalava nem há 10 minutos quando teve o primeiro furo do dia. À entrada de Monção voltou a furar mas aquela roda traseira não estava bem, parecia solta e não dava garantias que chegasse direita ao fim. Reposta nova câmara-de-ar no pneu, o jeito foi aguentar e pensar levar aquela roda à bruxa. A coisa foi aguentando e não deu mais problemas até ao final da viagem.
Com o corpo renascido por uma sopinha quentinha à maneira e pães d’alho, com a viragem a oeste, rumo a Valença, foi então a vez de enfrentar com afoiteza a pequena vingança de Éolo. Pois se até ali a pedalada havia sido canja, agora haveria de ser espinhosa, com as pernas esfalfadas e a cara ao vento, para subir, descer, subir muito, descer pouco, subir mais, subir mais ainda, bulir… Os pensamentos é que voavam. E faltava ainda bastante chão pela frente quando o meu tornozelo esquerdo resmungou alguma coisa. A melhor parte da viagem estava ainda para começar.
Quase ao cimo da serra, junto ao albergue de Rubiães, tempo para outra carimbadela, outra mijadela e depois aquela sensação de quase euforia ao iniciar a descida e atravessar uma região belíssima, no meio de vales, ao longo do rio Coura, pontes, terras e verdes de muitas tonalidades e cheiros. Foi tanta sensação que deixei cair a garrafinha acabada de encher de àgua fresca e que ficou vazia. A estrada descia e subia, muito sinuosa e muito bonita, com muitos recantos a jorrar água. Bem que desejava abastecer a garrafa mas decidi continuar a pedalada e alcançar o pessoal que ia lançado mais à frente.
Em Caminha foi bom rever o azul do mar depois de tanto verde! Por alguma razão o mar me fazia crer que poderia ser um passeio no parque, por terras planas, com o aroma suave da brisa, mas dali em diante, o cansaço e o vento de sul, contrário à nossa nortada, nos transmitia a sensação reforçada que a estrada parecia não ter fim. E nem os açucares sempre confiáveis do sumo de laranja e um caminhense, um dos doces tradicionais de Caminha, nos atenuaram a produção de ácido lático nas pernas. Os derradeiros quilómetros entre Viana e Esposende foram vencidos sem grandes dificuldades ou emoções, as maiores das quais garantidas pela vontade de chegar ao ponto de partida, estampar o último carimbo no cartão e concluir mais um brevet, onde cada qual chegou ao termo a seu ritmo, a seu tempo.
Depois foi tempo de retemperar o corpo com um banho, um jantar em grupo, onde a têvê me torturava com as imagens das desgraças do meu FêCêPê, que via a Taça da Cerveja por um canudo, levantada em glória pelos jogadores do Braga. Por alguma razão previ que naquele dia iria haver um vira minhoto!
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