crónica – Flèche Minho

Flèches PortugalAs Flèches são tradicionalmente um evento velocipédico, não-competitivo, e social, onde ciclistas “randonneurs”, que habitualmente participam nos Brevet Randonneur, Mondial, têm mais uma oportunidade de pedalar em conjunto. As “Flèches Portugal” têm origem em diferentes locais de saída, são percorridos por várias equipas de randonneurs que se dirigem rumo a um local de chegada comum, em Coimbra. Estes eventos decorrem segundo o padrão estabelecido para as Flèches Vélocio organizadas pelo Audax Club Parisien. Formada a equipe, são os seus elementos que escolhem a rota nunca inferior a 360 km’s, propõem os postos de controlo a cumprir durante vinte e quatro horas de pedalada em autonomia completa. Chegar é a meta, e na meta o prémio é um prato de massa servido à roda com amigos e companheiros de estrada. Depois do almoço, todos metem as bicicletas no comboio e regressam a casa. Resumindo é isto, mas é claro que muitas peripécias aconteceram nestas 24 horas de pedalada.

O desafio desta Flèche era para mim uma espécie de desforra pessoal, depois de frustrada a tentativa do ano passado, mas estava um pouco apreensivo pois não fazia um treino de jeito desde a minha ida e volta a Baiona. No último mês andei relaxado, um bon vivant à custa de um joelho resmungão! Tudo que eu precisava era de um fim-de-semana assim para reacender a minha ousadia dormente. Eu andava preguiçoso. Se bem que poderia aligeirar o esforço a bordo da mais levezinha, desejava sobretudo testar os meus limites no selim da Cósmica, a minha clássica bicicleta de aço, combinando os prazeres das pedaladas com as exigências do ciclismo de longa distância.

A aventura começou na véspera: Uma viagem de metro até à Póvoa; a proeza de três marmanjos se enfiarem com duas biclas dentro de um carro; dormir em Esposende; acordar cedinho; seguir para Viana e trocar de carro (este bem equipado com os apetrechos necessários ao transporte exterior de bicicletas); viajar os km’s que nos separavam do local escolhido para a partida em S. Gregório. O depart foi lá no alto do mapa, no ponto mais a norte de Portugal, bem no cantinho encostado à Galiza. Lá em cima esperava-nos uma neblina fresquita e o grilar chato do roamimg dos nossos telemóveis. Depois do pequeno-almoço, calibragem, kit, fotos, rabo no selim e, às 10h em ponto, finalmente o momento para que nós lá fomos, dar início à Flèche, dar ao pedal.

S. GregórioComeçamos em ritmo de passeio, a descer até Melgaço, até Monção, terras do genuíno Alvarinho. Abrira um belo sol no céu, e o ar quente e contagiante misturava-se com a paisagem minhota e os odores do campo. Um par de horas de pedalada e já cumpríamos o primeiro controlo, em Valença, prosseguindo a pedalada com apetite até Cerveira, onde parámos para almoçar. De barriga cheia, o próximo destino foi Caminha. Confesso que a vontade de lá ficar a fazer uma sesta na caminha não me faltou, mas a poucos minutos dali um mero aparelhómetro de GPS mal ajustado haveria de nos proporcionar o momento mais engraçado e algumas paragens inesperadas para ser resgatado dos paralelos. Com a suave nortada pelas costas a empurrar-nos o ímpeto, o lanche fez-se a horas no posto de controlo programado em Viana do Castelo.

em CaminhaE continuamos para bingo, isto é, para sul, até que um pequeno contratempo mecânico haveria de nos obrigar a uma breve paragem. Mais à frente, na Póvoa de Varzim, fizemos nova paragem para refrescar as ideias e dar algum descanso ao assento. Como resultado de um parafuso moído, o selim da minha bicicleta ganhava uma estranha e inusitada inclinação. Ora empinava, ora descaía, o que por mais aperto e reajustes que lhe fizesse o maldito sofá haveria de me moer a paciência e o rabo, quase até ao final da jornada. Finalmente encaramos as primeiras pequenas subidas do dia até contornarmos a Cidade Invicta e avistarmos o pôr-do-sol, já na Praia de Matosinhos. Novo carimbo no brevet e, sem mais demoras, bora lá cumprir a parte mais bela do percurso, a que eu já faço de olhos fechados. Com a noite a engolir-nos aos poucos, fomos contornando o Douro, do Porto até Gaia, onde haveríamos de jantar, escutando as ondas do mar.

Off Shore, GaiaEstávamos mais ou menos a meio da Flèche. Só então relaxei, liguei para casa e pus-me a inventariar as perdas: Coração? Batia; Pulmões? Enchiam; Pernas? Normais; Cabeça? Feliz; Rabo? Rabo!?!? Mas qual rabo? E ainda nos faltava meio dia de pedalada. Seguimos depois mais aconchegados na vestimenta e luzes apontadas à escuridão pela orla marítima de Gaia. Passada a cidade de Espinho, já em plena N109, o infortúnio proporcionou uma paragem extra ao largo de Ovar. Uma das binas xpto ficou com o manípulo de mudanças fora de acção, forçando o ciclista a usar os seus dotes MacGyverianos para se safar tão somente com o desviador do prato dianteiro, prosseguindo numa dualspeed, a duas velocidades: Uma depressa, outra depressinha! Next stop: Aveiro.

AveiroAí, há muito que o corpo ordenava sair do selim. Descansamos, hidratamo-nos, comemos, pelo menos tentei, e mesmo não tendo a menor pretensão de levar o relógio a sério, continuamos. Seguiu-se o trecho meio urbano, meio rural das Gafanhas. Acontece que aquele terreno planinho poderia até nos embalar no sono, mas o ar puro, a noite banhada pelo luar, a navegação por ruas iguais umas às outras, todos os possíveis estímulos nos mantinham acordados de uma forma inapelável. Mirar Mira perto das quatro da matina não é propriamente entrar numa localidade com muito movimento mas tem pelo menos um café aberto aquela hora. Mais um carimbo no cartão mas uma dúvida ficou mal esclarecida, e da qual só daríamos conta disso uns km’s mais à frente (o gajo do café está feito).

MiraNão me sentia no meu melhor, já vinha tendo provas disso há imenso tempo, mas aquela paragem proporcionou-me algum alívio, principalmente na zona dos glúteos… das nádegas! Outra vez sacrificado o traseiro à birra do selim, jurava aparafusá-lo pela última vez. Que bom isso seria! A noite entretanto tornou-se húmida e soprava uma brisa fresca de frente. Se de dia a recta da Tocha já é enfadonha, fazê-la de noite, sem o roncar de um camião ou de um ou outro acelera, é soporífica. Antes que algum de nós adormecesse a pedalar, acabamos vencidos por alguma sonolência e paramos no meio de nada, aproveitando finalmente para nos deliciarmos com a aletria do pequeno-almoço, trazida de casa nos alforjes. E que bem que soube!

Serra da Boa ViagemSeguiu-se a Serra da Boa Viagem, e mal tinha começado a serra propriamente dita viragem obrigatória para Quiaios. Não conhecíamos de todo aquela zona mesmo às portas da Figueira da Foz. O estudo prévio do percurso no satélite do tio Google viria a tornar-se comprometedor para as nossas intenções de ripanço no próximo posto de controlo, um hotel. Se a avaria em Ovar promoveu a parte tragicómica do passeio, não demoramos a perceber que a parte maravilhosa, fantástica, incrível e sensacional, estava só a começar. Logo à primeira subidinha eu já estava arreado e apeei. Quando o asfalto desapareceu e deu lugar a um carreiro de terra e pedras soltas, então todos desmontaram e empurramos as bicicletas ladeira acima, em pétêtê. Parece que aquele trecho do percurso não estaria no programa mas fez parte e só a luz do farol misturada com o som do mar, lá ao fundo, tornava aquilo ainda mais difícil e interessante! E lá acabamos vencendo a nossa pequena contenda, já no cimo da serra, depois de uns bons trinta minutos de hostilidades mútuas.

Montemor-o-VelhoAvistamos o Mondego, o que foi também um dos pontos altos do dia pois estava a nascer o sol… Bem, o sol de facto não se via mas notava-se pelo menos que já era de dia. Pedalávamos juntos e bem devagarinho, sem comprometer o desempenho uns dos outros… Ah, nada como uma corrida de bicicletas! Pois, querias!!! Dizer que estávamos exaustos é pouco. Eu estava de rastos e ainda não sabia que para chegar a Montemor não poderia dar parte de velho… de fraco, o que não dei. Chegada a 22ª hora de aventura, dali até Coimbra a pedalada seria instintiva, martelar os pedais quase que com o poder da mente. E seguimos juntos até ao nosso destino, pedalando sempre numa estrada lunar repleta de crateras, o que veio a demonstrar a boa resistência do material. Contemplando a paisagem e a natureza ao redor, entre arrozais e água, aqui e ali fomos cruzando com ciclistas de fim-de-semana. Bom também foi poder mudar um pouco o foco e deixar-me ficar para trás, comendo poeira.

CoimbraCoimbra tem mais encanto na hora da Flèche concluída, e assim, bem à hora marcada, chegamos ao derradeiro posto de controlo onde já haviam chegado as outras equipas, Flèche Papa Léguas e Flèche Pioneiros, oriundas da região de Lisboa. Feliz por ter desgrudado a bola de basquete… o rabo do selim, desmontei e não cai no chão. Carimbado o brevet pela última vez, para honra e glória de futuras gerações, já só queria a minha recompensa, o convívio com a malta e um prato cheio de tagliatelle com salmão.

brevet Fléche MinhoSe a vida é feita de momentos, o passado é feito de momentos marcantes. Comendo poeira e tudo, este foi mais um fim-de-semana agradável e intenso que vai certamente figurar no painel de memórias dos anos mais activos da minha loooonga juventude.
Valeu, Zé, Manel e Tiago, a valente equipa da Flèche Minho!

randonneur

Paulo.

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Sobre paulofski

Na bicicleta. Aquilo que hoje é a minha realidade e um benefício extraordinário, eu só aprendi aos 6 anos, para deixar aos 18 e voltar a ela para me aventurar aos 40. Aos poucos fui conquistando a afeição das amigas do ambiente e o resto, bem, o resto é paisagem e absorver todo o prazer que as minhas bicicletas me têm proporcionado.
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