uma voltinha pelo Douro…

... por onde o padeiro já passou!

… por onde o padeiro já passou!”

“O Doiro sublimado. O prodígio de uma paisagem que deixa de o ser à força de se desmedir. Não é um panorama que os olhos contemplam: é um excesso da natureza. Socalcos que são passadas de homens titânicos a subir as encostas, volumes, cores e modulações que nenhum escultor, pintor ou músico podem traduzir, horizontes dilatados para além dos limiares plausíveis da visão. Um universo virginal, como se tivesse acabado de nascer, e já eterno pela harmonia, pela serenidade, pelo silêncio que nem o rio se atreve a quebrar, ora a sumir-se furtivo por detrás dos montes, ora pasmado lá no fundo a reflectir o seu próprio assombro. Um poema geológico. A beleza absoluta.” Miguel Torga in “Diário XII” 

Este pedaço de prosa de Miguel Torga é sopa no mel para dar início à crónica de uma viagem, ao longo de um dia de viagem, ao encontro do mais belo rio do mundo: o Douro.

BRM Douro 2
Equipamento e bicicleta a postos, aos primeiros raios de sol foi dado o depart para o Brevet Douro Vinhateiro 200 no INATEL de Entre-os-Rios. Treze bravos randoneiros desceram então para o Torrão ao encontro da N108, dando as primeiras pedaladas e testando o material no piso empedrado da velha ponte sobre o Tâmega. Logo a seguir deram os bons dias ao Douro.

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Ao fim de meia dúzia de quilómetros, já com o corpo bem aquecido, passamos por Alpendurada e tomamos o rumo da Régua. Com as povoações ainda adormecidas, o dia ia despontando, sereno e imenso. No horizonte o sol prometia-nos uma viagem soalheira e amena. Descemos demoradamente até ao rio, e junto à estação da Pala cruzamos pela primeira vez a linha férrea, a Linha do Douro. Ocasião para trincar e bebericar alguma coisa, pois dali até à Venda Nova a distância é curta mas a subida para uma cota mais elevada é acentuada e o ritmo cardíaco iria acelerar.

BRM Douro 4
A N108 é por excelência a via panorâmica do Douro. Nas bermas vários miradouros motivam uma breve paragem para bebericar um pouco de água e registar o momento numa bela fotografia. A estrada serpenteia a margem direita do rio, contornando-o ao sabor da geografia dos vales. Há pouco tráfego e podemos sentir os sons e aromas da região. No ponto mais alto, na Portela do Gôve, o denso nevoeiro escondeu por momentos a panorâmica sobre o Douro. Com a descida, depressa voltou o sol e todo o esplendor mágico e vigoroso do rio.

BRM Douro 11
Depois da passagem em Tormes, junto à casa de Eça de Queiroz, um pouco mais à frente, na vila de Frende, terra natal da minha mãe, veio uma lágrima rebelde de emoção, e fez-se a primeira paragem de controlo para o cunho de passagem no cartão do brevet. Alguns quilómetros depois pudemos mirar de cima o belíssimo Chalé de Barqueiros. Aí, o granito dá lugar ao xisto e começam a surgir os primeiros vinhedos da Região Demarcada do Douro, o Alto Douro Vinhateiro, Património da Humanidade. No entroncamento para Mesão Frio, numa breve paragem junto às vendedoras de frutas, aproveitei o momento para um deslumbre da panorâmica do rio com as suas embarcações turísticas, enquanto ia roendo uma maçã deliciosa acabada de comprar.

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A descida para a Régua foi cuidadosa. Reencontramos a linha férrea e as margens do rio, passando nas localidades da Rede e Caldas do Moledo. Numa larga curva do rio avistamos o Peso da Régua e as suas três pontes. Parei só o tempo necessário para abastecer a locomotiva junto à estação ferroviária com um pacote de rebuçados tradicionais da Régua, mas a visita ao Museu do Douro teve de ficar descartada. De novo no selim da bina, virei à direita e cruzei lentamente a histórica ponte ferroviária, que nunca viu passar um comboio!

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Já na outra banda, tomei a direcção do Pinhão. Passando sob o arco da ponte granítica, foi só pedalar nas calmas pela N222, o nosso tapete rolante por umas boas hora de viagem. Nesta parte plana da estrada, o volume e a velocidade do tráfego aumentam, o que é sempre aconselhável redobrar cuidados. Sempre com os olhos postos na estrada, íamos espreitando a outra margem no espelho das águas serenas do Douro que se estendia pachorrento mesmo ao nosso lado, reflectindo os socalcos e vinhedos de várias quintas. Mais uma breve pausa para uma foto e ver o comboio parado lá no apeadeiro das Covelinhas, que serve a aldeia de São Martinho de Anta, terra natal do grande poeta Miguel Torga.

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Logo após o desvio para S. João da Pesqueira, deixamos a N222 por momentos e seguimos o rio, para o voltar a transpor através da estrutura metálica da ponte para o Pinhão. Com metade do brevet cumprido, foi apenas o tempo de carimbar o cartão na loja de vinhos do requintado Hotel Vintage House, segundo posto de controlo. Com muita pena minha, a degustação do vinho fino ficou para outras núpcias e trinquei outra maçã que levava no alforje. Regressamos depois por onde fomos e, um pouco mais à frente, decidimos então parar para um almoço ligeiro e retemperar energias.

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Com o mosto e o gosto do repasto, seguimos paulatinamente à conversa, tirando fotografias, repetindo a sedução de tão maravilhosa paisagem. A cada pedalada, o perfil da Barragem do Bagaúste foi crescendo no horizonte. Avistamos de novo as pontes e a Régua da outra banda. Sempre pela N222, mantivemos o leme para Resende, dando assim início a uma longa subida de inclinação moderada, aqui e ali premiados com umas curtas descidas. Em algumas partes do percurso podemos avistar da outra margem o caminho que havíamos feito pela manhã.

OLYMPUS DIGITAL CAMERAAo quilómetro 150, às portas de Resende, surgiu o terceiro posto de controlo na Pizzaria Fonte Luminosa, onde tivemos a oportunidade de recuperar o fôlego, forrar o estômago com uma sopinha, ligar a luminosidade da bicicleta e seguir para a última etapa do brevet. Retomamos a N222 rumo a Cinfães. Após descida rápida e passagem por Caldas de Arêgos, onde reencontramos as águas cintilantes do Douro, logo nos voltamos a afastar dele para subir e subir. Com altos e baixos, curvas e contra curvas, contornando cada afluente do rio, o último teste ao randonneur é rijo, dando a ideia que andamos às voltas.

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Nova descida e passagem junto ao cais e marina de Porto Antigo, lugar maravilhoso onde se tem uma nova descoberta a cada passagem. Aquela subida para Cinfães deu para perceber que isto de bicicletas clássicas e declives acentuados não são para qualquer um, assim lá tive de moderar a cadência e recorrer a todas as reservas. Lá do cimo, enquanto se avistou a barragem do Carrapatelo, íamos dando conta do céu cada vez mais carregado, prometendo chuvinha e da grossa.

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Passado um empedrado manhoso e esburacado em Cinfães, seguimos para Castelo de Paiva. Deixamos para trás as localidades de Tarouquela, de Escamarão, e caiu a noite. Depois de mais um longo sobe e sobe, foi já em plena descida na N224, para finalmente atravessarmos o Douro na malfadada ponte Hintze Ribeiro, que a chuva fez a sua aparição. De novo com os pneus na N108, viramos em direcção de Penafiel para, num par de quilómetros mais acima, entrarmos triunfantes no acolhedor e bonito edifício do INATEL, entregarmos o cartãozinho do percurso e dar por concluído este memorável e completo brevet.

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Sobre paulofski

Na bicicleta. Aquilo que hoje é a minha realidade e um benefício extraordinário, eu só aprendi aos 6 anos, para deixar aos 18 e voltar a ela para me aventurar aos 40. Aos poucos fui conquistando a afeição das amigas do ambiente e o resto, bem, o resto é paisagem e absorver todo o prazer que as minhas bicicletas me têm proporcionado.
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11 respostas a uma voltinha pelo Douro…

  1. Belo passeio, belo relato 🙂

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  2. paulofski diz:

    obrigado Cristrina

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  5. Um relato muito bem escrito de um trajecto lindíssimo do nosso planeta, o Douro vinhateiro. Apareceu.me por aqui ao acaso e gostei de ler porque adoro a região e o estilo da escrita é muito agradável .

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  6. paulofski diz:

    Muito obrigado Guida, pelo seu comentário, porque leu e gostou. É uma voltinha que aconselho a todos aqueles que gostam de viajar nas palavras. Ou então de bicicleta, de comboio ou de barco, certamente nunca a irão esquecer.

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apenas pedalar ao nosso ritmo.

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