outra vez a grande viagem

Sábado, seis da manhã. Algures na cidade, um gajo (aquele ali de preto e branco) salta da cama e sem bocejar cumpre o ritual habitual de qualquer manhã, menos o almoço, que em nada é pequeno. Veste uns calções almofadados no rabo e o fardamento apropriado para estas ocasiões. Divide os víveres pelos alforges costurados nas costas da camisola e besunta a pele exposta de camadas de protector solar. Deixa um beijinho à amada e um até já também. Desce até à arrecadação, coloca a restante armadura no corpo, monta na bicicleta e vai ao encontro do amigo e parceiro de longas pedaladas.

Nada preocupados com a distância que têm pela frente, nem se ou quando irão chegar, fazem-se à estrada em direcção ao Sul. O vento no rosto o faz sentir vivo e o caminho é lindo ao longo do rio Douro. Mais ou menos no local previsto, juntam-se ao pelotão que chega de músculos pré-aquecidos desde Paços de Ferreira. Mais uma vez partem ao desafio, pernas leves como plumas, a viagem dentro da viagem segue paralela ao mar. Enquanto os outros deslizam suavemente nas suas lindas e esbeltas bicicletas de estrada, ele segue-lhes na roda, fiel à sua querida e grotesca bicicleta de montanha, verdadeiro tractor com as devidas proporções e adaptações.

Para um passeio de bicla até que está uma bela manhã e, para surpresa e alívio da malta, desta vez Éolo apareceu para ajudar. Vento de norte é uma coisa, vento contra é bem diferente. Mais uma cidade desponta no horizonte. E mais outra e outra, a ondulante estrada nacional 109 rasga o litoral luso de alto a baixo. Fazem pequenas paragens para alimentação e hidratação sem deixar arrefecer a vontade. As pernas já reclamam descanso e até as subidas mais ligeiras, nos momentos em que a cadência das pedaladas fica reduzida ao mínimo indispensável, é precisa concentração máxima para enxergar as curvas, os cruzamentos e eventuais condutores de fim-de-semana.

Avista-se a verdejante e convidativa Serra da Boa Viagem, mas que fique claro que de verdejante a serra só é convidativa se forem masoquistas, pois ao fim de mais de uma centena de quilómetros já é bastante exigente, e ter um pneu furado no meio da subida só serve para tornar tudo ainda mais memorável. Na descida a paisagem é tão bonita que compensa tudo.

Estrategicamente, na Figueira da Foz, um grupo de ciclistas famintos e cansados tem finalmente o merecido descanso para reposição de nutrientes. Claro está que gostariam também de repor as pernas e pulmões mas têm de se contentar com uns litros de coca-cola, rissóis e pão com chouriço.

Com um terço do caminho ainda por percorrer logo voltam de novo ao asfalto pelas longas rectas que se seguem. Já não sentem as pernas, quando muito sono e ligeiramente a desconfortável tortura do selim. O nosso herói, esse, continua firme, seguindo o velho truque de se ir deixando ficar para trás, muito de leve, muito aos poucos, segurando subtilmente os seus ímpetos em nome da sobrevivência. Mais paragens para alimentação e hidratação que se fazem agora mais demoradas para descansar. Chegam ao início da derradeira subida da Serra da Santa Catarina e livram-se de tudo o que é peso morto, do corpo e da bicla, para o porta-bagagens do carro-vassoura. Após o derradeiro esforço e a reconfortante descida até à Cova, felizes, chegam todos em grupo, triunfais ao fim da grande aventura.

Para algumas pessoas, estes tipos não passam de um grupo de cotas malucos metidos a radicais. Como assim!? Então, se pedalar por sete ou oito horas, até Fátima, fazem-no apenas por puro prazer e vontade? É, o mais importante para eles não é chegar ao destino, a algum lugar. O que importa é curtir a pedalada, apreciar a paisagem e o espírito de grupo até lá. De outra forma eu não saberia descrever esta mistura de adrenalina, vento, gravidade, sol, curvas, verde, sonho, esforço, contentamento, ar puro, calor, carros apressados, pernas pesadas, natureza, vontade.

Estou como o aço!

Sobre paulofski

Na bicicleta. Aquilo que hoje é a minha realidade e um benefício extraordinário, eu só aprendi aos 6 anos, para deixar aos 18 e voltar a ela para me aventurar aos 40. Aos poucos fui conquistando a afeição das amigas do ambiente e o resto, bem, o resto é paisagem e absorver todo o prazer que as minhas bicicletas me têm proporcionado.
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