
Brevet Alto-Minho 200
Esta coisa de agora se dar nome às tempestades que assolam a terrinha e o sul da Europa está a deixar São Pedro com ideias. Se em meados de Dezembro com a tempestade Ana se deu o início à contagem, estamos no início de Abril e a ordem alfabética da lista pré-estabelecida já vai no i! Note-se que não é um qualquer pé-d’água que tem direito a baptismo, apenas os temporais do nível laranja ou vermelho é que são os felizardos. Assim, a este ritmo, depressa vamos esgotar o abecedário das tempestades.
– Ó Pedrocas, acho que estás a exagerar pá!
O tuga até está habituado a depressões de vários géneros, agora tirar-nos o Inverno suave e a amena Primavera, vai lá vai. Mas um gajo que usa a bicicleta diariamente para ir e voltar do trabalho, vai e volta no selim nem que chovam canivetes. Depois um gajo que pensa aproveitar o fim de semana, e na tarde de sexta-feira devaneia com um agradável passeio de bicicleta, é acordado na madrugada de um sábado ou de um domingo com a borrasca a bater forte na janela, volta-se para o outro lado e continua no sono dos justos.
Com esta minha preguiça/indolência/moleza, com a desculpa das intempéries, aproveitando apenas algumas abertas d(e)o tempo, revendo o meu filme cicloturístico de #doismiledezoito, eu ainda não havia completado uma volta minimamente longínqua, daquelas que vão para além de uma centena de quilómetros e com pelo menos cinco horas seguidas alapado no selim! As pernas e o rabo ainda não estavam formatados para as longas distâncias, e dei por mim a agradecer a um tal de Félix ter chegado em força no sábado que estava talhado para a minha primeira participação nas festividades randoneiras anuais, no Brevet Alto-Minho 200.
Com o imprevisto e forçoso adiamento do Brevet devido às “muito más previsões meteorológicas” provocadas pela depressão de um tal de Félix, aproveitei as ultimas três semanas para atenuar alguma falta de ritmo com uns curtos treininhos no pátio cá de casa. Nem a sexta-feira santa escapou e nem uma tal de Irene, que não é a sIrene dos Recursos Humanos, me deprimiu. Cedi à tentação de ficar a manhã do santo feriado enrolado na cama e aceitei o desafio do Rui e do Couto. Abril, águas mil… então, que sejam.
O mote seria dar um giro para lavar o espírito e preparar o corpo para os doces da Páscoa. Ora, em vez de ficar a poupar-me para o dia seguinte, alevantei-me e espreitei o céu cinzento pela janela. Parecia que o dia prometia uma excelente aventura e não me enganei. Foi chuva da grossa com vendaval à mistura, rajadas do pior, e que nada tiveram a ver com o trambolhão no fofo chão de pedras e lama que amandei. Fiquei bonito!

“quero ver Irene dar a sua risada”
Sábado, quatro da matina, acordo com o ruído da borrasca que batia forte na janela. Era a Irene a recordar-me os avisos meteorológicos de véspera. Ainda algo dorido no meu arcaboiço, mais concretamente no flanco esquerdo, preparei a trouxa, pendurei a bicla no carro e saí para a primeira etapa do dia, até Esposende. A chuva copiosa que apanhei na estrada foi óptima para deixar a gOrka bem lavadinha. A chegada à delegação da Cruz Vermelha de Marinhas, o local habitual de saída para estas brincadeiras randonneiras a norte, percebi que iria formar de novo o grupeto com a Lenita, o Luís, o Mário e o Campelo.
Sendo este o meu terceiro brevet pelo Alto-Minho (aqui o relatório do primeiro) o circuito era-me familiar, portanto. Na hora do depart, com o firmamento a tornar-se mais azul, abalei para o vira minhoto com a promessa de um doce dia de Páscoa. As primeiras conversas foram mantidas numa pedalada relaxada pelo asfalto alagado da N13, o que naquela estrada obriga a activar o modo extra de sobrevivência. Do relaxe pró sonolento, após o vira para nascente, despertamos definitivamente quando a luz solar reflectida no espelho da estrada nos encandeava. E foi com um saboroso ventinho pelas costas que nos embrenhamos no belo Minho.
Ponte de Lima, Ponte da Barca, ponte medieval sobre o Vez, cada vez que cruzávamos um rio, cada vez que pedalávamos aos solavancos, a monotonia era zero. Não me canso de repetir, o Minho é lindo, exuberante e mágico. O panorama verdejante dos vales, das casas, do granito, dos animais a pastar na berma das estradas, o som da água em cascata, tudo junto nos impelia impetuosamente pelo deslumbre da Natureza e amolecia a cadência da pedalada no declive da estrada. Foi a pedalada de tartaruga que passamos o chamado “pequeno Tibete português”, a aldeia de Sistelo, às portas da serra Peneda-Gerês.
Depois da paragem na Portela do Alvite para registar a passagem e trincar uma sandes de presunto, só as exigências de uma estrada perigosa a precisar urgentemente de obras, e a repentina ferroada de um zângão abelhudo no meu pescoço, me poderiam abstrair de admirar o imponente Glaciar do Alto Vez como pano de fundo… Xiça qu’esta doeu!
Com Monção para trás, e com o corpo renascido pela canja, o prato do dia seria agora enfrentar com afoiteza o vento de frente e a subidita para Rubiães. A passagem por Valença, toda tomada pela retención de coches, provocada por bandos de espanhois em férias pascoais, estava pior que a hora de ponta na Cidade Imbicta!
Com os pontos mais altos do dia ultrapassados, o doce continuou a ser degustado na fascinante estrada que serpenteia o vale do Coura, a par com o rio até à sua foz, em Caminha. Esta estrada, a N301, é um tónico para as mais esotéricas sensações que se podem guardar nesta coisa de pedalar pelos caminhos de Portugal. Está desde já mentalmente agendada nova passagem, mas no sentido inverso, na maior parte da sua extensão em ascensão.
Uns pingos de chuva à passagem por Caminha e a fome vieram apenas amansar a vontade de parar e pedir o lanche.
– É um Sidónio e um Compal de frutos vermelhos, ó faxabôre!
Repostos os açúcares na corrente sanguínea (isto dito por um diabético soa a gulodice) foi dar rotação à corrente “biciclínea”. Reforçada a vestimenta, depois de tanto verde, até ao final da jornada o tom seria o cinzento, do horizonte, do mar e do vento de sul, que embora descolorido era bem sentido na fronha. E foi na parceria de fragrâncias marítimas e chuviscos manhosos que os derradeiros quilómetros, entre Caminha, Viana do Castelo e Esposende, foram vencidos sem grandes dificuldades ou emoções. Já a noite havia caído quando chegamos ao ponto de partida, sorriso estampado para estampar o último carimbo no cartão e concluir mais um brevet, onde cada qual chegou ao termo a seu ritmo, a seu tempo.
O prémio à chegada foram duzentas e tal amêndoas de chocolate. Bem bom.
Se há uma lei irrevogável da física, o facto é que em certas situações os níveis crescentes de esforço não correspondem a níveis crescentes de desempenho. Essas situações envolvem tanto o vento como os declives. Tivemos alguns pontos onde as energias iam começando a faltar mas o alento paisagístico ganhava cor e nos transmitia querença. Independentemente do esforço, da tenacidade, do simples prazer de pedalar, o facto de virarmos as costas às tempestades ou as enfrentarmos de frente, o que só torna a coisa mais exigente e gratificante. Afinal, esta Irene até que foi muito do serene!
Pingback: outra volta BRM pelo Alto Minho e outro Voltaren | na bicicleta