à Descoberta do Romeu…

A nossa recente pedalada, rodopiando o Douro pela N222 até à aldeia dos meus avós paternos, reavivou no espírito do meu amigo Manuel Couto o desejo de empreender uma viagem de bicicleta ligando as suas casas, entre Vila Nova de Gaia e Romeu de Jerusalém, em Mirandela. O plano estava traçado, sete convivas alinhariam no desafio, faltava apenas escolher o percurso. Em mim, acicatou-se a enorme curiosidade de conhecer uma terra que recentemente vi e ouvi falar, num dos meus programas televisivos favoritos. Foi através do Caminhos da História, notável programa do douto historiador Joel Cleto que semanalmente passa no Porto Canal, que no episódio sobre Mirandela (clicar no link para ver o episódio) fiquei a conhecer a relação da aldeia transmontana do Romeu com Clemente Menéres (e seus descendentes). Clemente Menéres foi um empresário de sucesso da segunda metade do séc. XIX e que dá nome a uma rua do Porto, mesmo aqui ao lado do meu gabinete.

Cinco da manhã de Sábado e já estava pronto para saltar da cama. Com tudo preparado de véspera, apenas a incerteza meteorológica me mantinha inquietado. A adrenalina de mais um convívio e de outra distante pedalada estava nos píncaros. O apelo da velha estrada, explorar novos lugares, a liberdade rodoviária, fugir do reboliço da cidade… Que pensamento libertador! A reunião com o Rui, o Jacinto, o Couto e o Campelo estava marcada para uma das portas de saída do Porto, no Freixo, onde se daria o arranque para a pedalada temática “à Descoberta do Romeu com gastronomia no Maria Rita”. A  parte da “Descoberta” debruço-me nesta crónica, da restante temática do evento, “a gastronomia no Maria Rita”, farei crónica mais tarde.

Sentia-me particularmente revigorado, uma boa noite de sono é importante, e o meu corpo ansiava quilometragem. O passeio de bicicleta é um ritual importante para mim. Depois de alguns minutos a pedalar, as endorfinas começam a surgir, os diabretes a acalmar, mente sã e revigorada. Aos habituais cinco cicloturistas, juntavam-se desta vez o Tozé, aka Wolf, e o Henrique, aka Kiko, para pedalar em conjunto ao longo do mais belo rio, o Douro, pela N108. O nosso amigo Wolf, mais habituado a pneus largos e aos saltos no monte, fazia o seu baptismo com uma bicicleta de estrada. E um baptismo que se preze deve ser com água fria, neste caso um furo, e logo nos primeiros quilómetros de pedalada.

A manhã estava fresquinha, o asfalto molhado da alvorada chuvosa mas as nuvens mantinham-se afastadas. Com as povoações ainda adormecidas, o dia ia despontando, sereno e imenso. No horizonte o sol prometia-nos uma viagem amena, aqui e ali encoberta, mas seca. Rolamos demoradamente até à primeira paragem para trincar e bebericar alguma coisa. Fomos cruzando com um grupo de vespistas e ciclistas conhecidos da malta. Depois da Pala, aceleramos o ritmo cardíaco até fazermos o pit-stop obrigatório na mercearia da Venda Nova para o tradicional brinde com um Moscatel de Favaios. Deixo umas palavras de conforto e o nosso muito obrigado a dona Mariazinha que está a passar uma fase delicada da sua vida.

A N108 é por excelência a via panorâmica do Douro. A estrada serpenteia o rio, contornando-o ao sabor da geografia dos vales. Há pouco tráfego e podemos sentir os sons e aromas da região. A certa altura a humidade adensou-se e começamos a sentir a morrinha na cara e a salpicar os óculos. Após uma breve paragem no Miradouro dos Dízimos para relaxar, admirar a paisagem e registar o momento numa bela fotografia de grupo, aceleramos o ritmo pois a morrinha passara a chuvisco moderado. Estávamos já com as pernas sob a mesa do restaurante Novo Sol, em Loivos da Ribeira, degustando um saboroso e caseiro repasto, quando lá fora de súbito se abateu uma bátega de água. Oh pá… do que nos livramos!

Retomamos a estrada num ritmo calmo, fazendo a digestão da feijoada. Entretanto o tempo havia melhorado e um sol tímido escondia-se nas nuvens. Um pouco mais à frente, na vila de Frende, terra natal da minha mãe, veio uma lágrima rebelde de emoção. Depois de passar Barqueiros, com a descida para a Régua, depressa voltou o sol e todo o esplendor mágico e vigoroso do rio. Coincidiu ser aquele o fim de semana do anual evento velocipédico da região, o Douro Gandfondo e, é claro, não íamos desaproveitar uma visita ao palco do evento, nem que fosse para sentir o clima da festa. “- Isto agora é tudo vosso” ouvi da boca de um automobilista, frustrado por não lhe ser permitida passagem. Temos pena!

De novo no selim da bina, fomos em busca do desconhecido, a Ecopista (!) do Corgo, o trilho deixado para o povo aventureiro da desativada linha férrea que outrora ligou Régua a Chaves. O objectivo era aproveitar os seus suaves 2% de ascensão até Vila Real, em detrimento do alcatrão das empinadas estradas N2 ou N313. Nas pesquisas que havia feito no sentido de obter informação do estado dessa parte da Ecopista, a informação era escassa e desatualizada. Querendo acreditar na melhoria ciclável da via, algumas fotos do último quilómetro de strerrato à chegada a Vila Real faziam-me crer nisso, certo é que a via tem muito de “eco” mas quase nada de “pista”.

Para além das vistas fantásticas do vale do Corgo, das escarpas, das aldeias, do Marão, do Alvão e da belíssima ponte da A4, não é de todo aconselhável andar por ali em bicicleta de estrada com pneu 28, quanto mais 23! Demorámos cerca de duas horas para fazer uns meros 22 quilómetros, o que derrotou todas as nossas previsões de chegar a Vila Real lá pelas 16h, e derrotou também o novato das rodas fininhas. Foi obra termos saído daquele tormento com apenas um furo registado. Eu cá gostei e curti a experiência. A Tripas mostrou-se resistente, capaz de calcar todo o tipo de solo com cascalho solto e pontiagudo, ultrapassar pontes estreitas e vertiginosas… Bem, esta parte foi à minha custa, mas que valeu a experiência, valeu!

Para mim, andar de bicicleta é também companheirismo. Nos momentos em que se sente que já chega e custa continuar, quando algo parece faltar, há que compreender e resignar. Com mais de 150 quilómetros entretanto pedalados, os nossos dois amigos menos habituados às longas distâncias aproveitaram o carro vassoura e deram por fim à aventura. A maneira como eu vejo a coisa, é que com determinação todos podemos concluir aquilo que fixamos como meta. No final do dia, o mais importante é que tentamos, com a dificuldade em desafiar-se e sair da zona de conforto. A parte mais difícil é sempre dar o primeiro passo para fazer algo que nunca se fez antes. Depois disso, tudo é fácil. Quanto ao que algumas pessoas comentam, e não fazem a mínima ideia do que estão a comentar, é deixá-las a falar sozinhas.

Depois de abastecer as locomotivas junto à esquecida estação ferroviária de Vila Real, os duros do pelotão voltaram ao selim e retomaram o caminho. Foi quando, à paragem num semáforo vermelho, em pleno cruzamento no centro vilarealense, o animado diálogo entre o Couto e os ocupantes de um jipe lhe valeu uma inesperada e inusitada oferta. Amarrada a garrafa de vinho, continuamos à procura da N15 para dar seguimento à descoberta.

Faltava ainda um terço de pedalada e as pernas já reclamavam do esforço. Os dez quilómetros seguintes foram apenas diversão. Encontrei o meu ritmo e fui vendo os meus companheiros lentamente se afastando na ascensão do asfalto. Gosto da distância e da companhia, mas eu poderia provavelmente nunca fazer parte da comunidade randonneur se não tivesse também um espírito de lobo solitário. Mais à frente esperaram por mim, reagrupamos, descemos, voltamos a subir, até nos determos num café para um lanchinho. Depois do Pópulo, finalmente tivemos direito a uma longa, serpenteante e deslumbrante descida até à ponte sobre o Rio Tinhela, mesmo às portas de Murça. Ao longo da descida deliciei-me com o enquadramento verdejante das vertentes, salpicadas pelo amarelo vivo das maias, as flores das giestas. De notar também os pouquíssimos carros que passamos e nos passaram.

À medida que o horizonte se pintava com todos os tons de rosa, laranja e violetas, que os pássaros procuravam abrigo, apenas o rugido do vento nos meus ouvidos e a minha abordagem bastante calma ao relevo. Nesses momentos é fácil esquecer o relógio, e a passagem do tempo é uma coisa relativa. Já não sinto se estou a subir ou a descer. Estou no piloto automático e de alguma maneira a rodar os pedais, vendo e absorvendo a maravilhosa metamorfose do mundo ao meu redor. Eis que anoiteceu e o objectivo em mente passou a ser chegar a Mirandela a horas decentes para jantar.

O sistema luminoso que eu tenho instalado na Tripas funciona muito bem. Especialmente no breu da estrada, quando é bastante noite, o feixe frontal clareia todo o asfalto à minha frente dando-me uma agradável sensação de segurança. A luz traseira é visível a longa distância, deixando muito provavelmente intrigados os automobilistas que me seguem e me vêm, muito provavelmente questionando-se “o que diabos está a fazer aquele maluco numa bicicleta àquela hora!”

Depois da nossa entrada em Mirandela, da fotografia à iluminada ponte velha, sentámo-nos à mesa de um restaurante que estava prestes a fechar portas. Finalmente, pudemos acalmar as barrigas e degustar as típicas e saborosas alheiras de Mirandela. Mas a nossa excursão ainda não havia terminado. Até Romeu de Jerusalém, ao duche e à desejada cama, ainda nos separavam pouco mais de uma dezena de quilómetros que foram cumpridos com uma sonolência e cansaço indisfarçáveis, apenas interrompidos pelo empedrado nos quilómetros finais. Ao fim de quase 240 milhares de metros pedalados desde o litoral até ao nordeste transmontano, eis-nos chegados a Romeu com um sorriso e satisfação enormes. Tomados os banhos e distribuídos os leitos, tive o sono dos justos sonhando as aventuras que me esperavam no dia seguinte… e a prometida degustação gastronómica no Maria Rita!

Continua… (aqui a crónica da aventura)

Sobre paulofski

Na bicicleta. Aquilo que hoje é a minha realidade e um benefício extraordinário, eu só aprendi aos 6 anos, para deixar aos 18 e voltar a ela para me aventurar aos 40. Aos poucos fui conquistando a afeição das amigas do ambiente e o resto, bem, o resto é paisagem e absorver todo o prazer que as minhas bicicletas me têm proporcionado.
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3 respostas a à Descoberta do Romeu…

  1. Nelson Branco diz:

    mais uma grande distância cheia de “aventuras”… estou a gostar.
    A ecopista do Corgo esteve em cima da mesa de reuniões aqui dos “cavaleiros”… Chaves -Régua seria o objectivo, mas depois de um estudo mais aprofundado sobre o estado da mesma, decidimos abortar a aventura! Aquelas pontes não pareceram muito seguras para moços com “oiras bertiginosas”!

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  2. paulofski diz:

    Um amigo fez há dias a ecopista entre Vila Real e Vidago. Ao que parece, essa parte mantém uma certa exigência quanto ao material ciclável, sendo uma via mais propícia as rodas de bêtêtê, no entanto disse-me que é mais ciclável que o trilho entre a Régua e Vila Real. As pontes dão mesmo “oiras”, mas dão para passar com cuidado pois têm passadiços de razoável largura e são curtas em extensão.

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