rodopiando o Douro

Há uns dias voltei a estender o convite a mais amigos para rodopiar o Douro. O plano seria repetir o roteiro de outras aventuras, às aldeias dos meus avós, pelas estradas nacionais N108 e N222 quase até Vila Nova de Foz Côa, e depois voltar. Às tantas deixei-me levar pela vontade de fazer a N222 “melhor estrada do mundo”, desde o quilómetro zero em Vila Nova de Gaia. “-Bamos a isso!” Estabeleceu-se a data, foram-se preparando as pernas, carregaram-se as biclas, e às 7 da matina do Sábado passado lá estávamos junto à estação de metro D. João II, ao cimo da Av. da Republica em Gaia, prontos para dar inicio à viagem.

Eu e o Rui, amigo de longa data, já levávamos o aquecimento feito desde casa, subindo a avenida ao encontro do Manuel Couto e do Paulo Campelo, oriundos de Avintes e de bicicletas carregadas, mas não traziam broas! Depois de uma semana de incertos boletins meteorológicos, estávamos um pouco apreensivos com este “Primaverno” com que Mãe Natureza nos tem brindado. Embora bastante fria, a manhã despontou com algumas nuvens e um sol cintilante. Apontamos para leste e nos deixamos levar pelo apelo da velha estrada.

A primeira rajada bate-me no rosto ainda antes de eu rodar o pedal. O vento de Leste é bom presságio para tempo seco, mas é um valente desafio para quem quer pedalar e avançar para o interior. Desta vez pareceu-me apropriado levar a minha bicla mais levezinha, a gOrka, o que achei extremo foi tentar pegar na carbónica KTM do Campelo e não a conseguir sequer levantar do chão! Ele trazia a casa toda, mas, conhecendo-o bem, não seria o peso daquele carrego que o faria demorar. Bem pelo contrário, a locomotiva estava preparada para nos arrastar.

Andar pelas curvas do Douro é pura alegria. A estrada empina e desempina, tão depressa se levanta o rabo do selim como baixamos o queixo e se fincam as mãos nos drops, em alta velocidade. A bicicleta tem asas. Foi óptimo, e os primeiros quilómetros passaram a voar. Mesmo com um vento resistente a tentar travar-nos, sentia-me no controle e era capaz de girar os pedais como queria. Entre Raiva e Castelo de Paiva, a velha estrada é subalternizada pela sua moderna alternativa, o que pode levar a algum tipo de confusão para quem se quer manter e prosseguir no seu desgastado asfalto. Pelo menos a Variante à N222 retira algum tráfego automóvel, o que só beneficia o ciclista.

Uma transpiração boa e saudável surgiu rapidamente enquanto se pedalava pela subida para Cinfães. Por esta altura, em termos de resistência física sentia-me mais forte do que o habitual! Talvez fosse o resultado da minha excitação por estar novamente neste troço da estrada! Talvez o entusiasmo pelo clima agradável! Talvez pelo ambiente, o verde exuberante! Talvez… Não, acho que tinha mais a ver com a música “prapular” debitada pelo sistema sonoro que o DJ Campelo trazia na bicla! Tenho a certeza.

Quando rapidamente a estrada se desviou e desceu para Porto Antigo, foi com o ímpeto do vento na cara, do clima agradável do meio-dia, do Douro exuberante, do som ambiente do Rio Bestança no fundo do vale, que redobravam a excitação. De vez em quando, uma pausa para as selfies, depois os convivas faziam-se ao caminho e eu ficava para trás para mais uma fotografia, capturando coloridos lembretes da encantadora manhã, do cenário, das cerejeiras floridas e da neve no cocuruto do Marão. A partir dali, e por longos e fascinantes quilómetros, a companhia do Douro conduziria a malta de pernas doridas mas com um fôlego renovado.

No Brevet do Douro, parte do percurso pela 222 é feito em sentido inverso. Previ o almoço à passagem por Resende e escolhi o mesmo local que serve de posto de controlo no BRM200 Douro Vinhateiro, o Restaurante 4 Irmãos. Saciados pelo arroz de feijão e animados pelo sorriso simpático da menina de Minhães (atenção que o namorado estava na sala), depois do repasto voltamos tranquilamente ao selim das bicicletas e ao esplendor mágico e vigoroso miradouro que é a N222. Da outra banda visualizava a sua congénere, a estrada N108 que serpenteia a margem direita do rio, e o Lugar que tem um lugar cativo no meu coração, o Lugar do Castelo em Frende. Mais à frente, ao quilómetro 120, onde um marco rodoviário histórico assinala o meio da velha estrada, fizemos uma pequena festa.

Começam a surgir os vinhedos da Região Demarcada do Douro, o Alto Douro Vinhateiro, e aproveita-se o momento e a longa descida para um deslumbre da panorâmica do rio, do Peso da Régua e das suas pontes. Entramos no troço da considerada “melhor estrada do mundo”, entre a Régua e o Pinhão. Ao contrário do que pintam no artigo que “linquei”, o troço que bordeja o rio só é mágico se for percorrido a pedalar, ou no mínimo ao volante de um 2 CV. Os carros passam ali tão rápido que quem vai lá dentro nem sabe o que perde. De carro, a velha E.N. só era mágica quando eu ficava enjoado de tantas curvas e contracurvas no banco de trás do Fiat 127!

Naquela parte aplanada da estrada…

[…] Até Pinhão, onde se exibe uma belíssima estação de comboios, vestida de preto e azulejos espalhados pelo corpo, há miradouros que servem de boa desculpa para interromper o passeio. Há uma ponte romana, uma senhora a estender a roupa, um ciclista ou outro armado em Mario Cipollini e interrupções na estrada para cortar árvores. Veem-se também alguns velhotes à conversa, quem sabe a recordar histórias malucas naquela estrada. Ou, simplesmente, boas memórias […]

…para além de me preocupar em não levar com um bólide em cima, tentava manter o ritmo aproveitando a roda dos companheiros. Acontece que foi tudo preocupação em vão. Depois de três ou quatro paragens para as inevitáveis fotografias, depois de quase uma hora de pedalada contra o vento, depois de uns tímidos pingos de chuva, reencontrei a malta recolhida na tasca nas Bateiras, na bifurcação das estradas N323 para o Pinhão e a N222. Em direção a S. João da Pesqueira, a estrada empina e bem. De novo a sobejamente conhecida subida de 14km pela frente, um segmento longo e de agradáveis vistas, dos vinhedos, do rio e dos montes. Entretanto percebi que deveria ter-me alimentado melhor!

Do Alto Douro Vinhateiro, não importa quantas vezes eu pedale por ali, nunca serei capaz de compor tudo numa só imagem, nunca serei capaz de exprimir tudo num só parágrafo. Ao ritmo de um cágado, eu ia girando os pedais e pingando suor. A subida não estava fácil. Parecia a minha primeira vez. A companhia do Rui, o seu incentivo e entreajuda, com todo aquele cenário à minha volta cheio de vida e em movimento, foi um reforço motivacional e energético. O meu coração estava acelerado! Os músculos latejavam. Os meus “diabretes” estavam a desvanecer-me. Dezoito horas em ponto, à hora do lanche, chegámos finalmente a São João da Pesqueira.

Com pelo menos mais uma hora de luz natural, um manto de nuvens negras escondeu o sol e subitamente a temperatura caiu. Com um reforço na vestimenta, pois só voltaríamos a subir depois de Vilarouco, de luzes ligadas e dentes cerrados, envolvido numa espécie de mantra, procurei no meu ritmo lento e nos meus pensamentos abstrair-me do desconforto do selim e do protesto das pernas. Depois do chegar ao alto de Castanheira do Vento, tivemos pela frente uma descida demorada. Com cautelas redobradas pelo breu, avistamos a iluminação urbana de Horta do Douro a cintilar no meio da escuridão. Vale da Teja, Sebadelhe, seguiu-se uma subida doce mas que parecia mais uma subida à Torre. Entretanto vi-me envolvido numa série de questões e dúvidas existenciais dos meus companheiros de route: “quantos km’s faltam?”; “onde vamos jantar?”; “e se o restaurante estiver fechado!!!?”… Não liguei, e sem que eles percebessem sorri de maroto. O conta-quilómetros já havia passado dos 200.

Chegamos a Touça e avisei-os que não tardava, iríamos virar à esquerda para Freixo de Numão. Feitas as despedidas à mítica estrada que nos trouxe até ali, entramos na N324. Depois de passar próximo a Vila Nova de Foz Côa, a N222 continua até Almendra. “-Apertem bem os colarinhos pessoal, até ao rio é sempre a descer e isto vai arrefecer”. Com mais uma camada na carcaça, vestia quase tudo o que levava, passamos “a abrir” pelo centro da vila e entramos na escuridão completa. É espantoso o barulho do ar que nos rodeia as orelhas quando embalamos na descida, dobrando as curvas, sentindo as notas doces das rodas no pavimento, pisando folhas e galhos, algo solto no asfalto, uma espécie de caos coreografado na escuridão, apenas concentrados no foco de luz à nossa frente. Que pena não podermos apreciar a paisagem, ia pensando. A certa altura um prenúncio de civilização, a aldeia de Murça, mas ficamos de novo embrenhados na escuridão. Enregelados e a delirar, que aquilo nunca mais tinha fim, os meus companheiros já duvidavam de mim. Mas claro que teve um final… e triunfal!

Com 220 quilómetros rodados chegámos esplanada da Petiscaria Preguiça, recebidos pelos latidos espantados de um bando de cães e indo directos à mesa de iguarias, onde a famosa sopa de migas de peixe, a posta com arroz de feijão (fogo de artifício prometido para mais tarde) e as doces sobremesas nos esperavam. A simpatia dos cicerones e dos meus primos, com festa e bolo de aniversário incluídos, alimentaram-nos o corpo e hidrataram-nos o espírito com um cálice de vinho fino da região. Mós do Douro dormia quando estes malucos estranhos se instalaram numa alegre casinha para a merecida noite de descanso. Ainda para mais a noite tinha menos uma hora, pois escolhemos logo a passagem dos ponteiros do relógio para o chamado horário de Verão! Mas que Verão!? Esgotou-se o stock de cobertores.

Para o dia seguinte, para regressar ao Porto, várias hipóteses se levantavam. Isso caso chovesse muito, ou não! Mais lentos e mais pesados, saímos da cama para espreitar a janela. O Domingo amanheceu com a promessa de um dia bem húmido, mas não chovia. Tínhamos a previsão de chuva apenas para a tarde, o suficiente para, pensávamos, chegarmos “secos” à Régua! Alguns ajustes depois, bicicletas apetrechadas, tudo arrumado, café e fotografia tirada, retomamos a manhã fazendo o caminho inverso. Portanto, foi basicamente subir o que de véspera havíamos descido, com a aliciante, desta vez, de poder apreciar tudo aquilo que nos rodeava. Os dez quilómetros a subir pela N324 até Freixo de Numão foi um bom tónico para acordar definitivamente. Sempre aquele vento do contra, que desta vez soprava de sudeste, o que significava termos ventinho pelas costas quando voltássemos a pisar a N222.

Sugeri a passagem pelo interior de Horta do Douro e o Couto não se fez rogado em estacionar a bicla e, à sua maneira, pilotar o avíão. De volta à estrada, chegámos a S. João da Pesqueira à hora do almoço na companhia dos primeiros pingos de chuva. Por sugestão de um motard, fomos comer um bacalhau à moda do Carocha. A promessa de chuva cumpriu-se e a descida para o Douro foi bem molhada e cuidadosa. A pedalada de retorno teve o benefício do vento que nos ia empurrando a um ritmo mais rápido. Na Régua saboreamos o rebuçado do carro vassoura e, com mais de 300 quilómetros nas pernas, demos por terminado o nosso passeio de bicicleta.

Mais uma vez deixo agradecimentos aos meus companheiros de route, pelo convívio e boa disposição, prometendo desde já a disponibilidade para outros devaneios no selim e pernas debaixo da mesa. Todos os bons caminhos vão dar à N222. Todos os meus desejos vão dar às Mós. Obrigado e até ao próximo.

Sobre paulofski

Na bicicleta. Aquilo que hoje é a minha realidade e um benefício extraordinário, eu só aprendi aos 6 anos, para deixar aos 18 e voltar a ela para me aventurar aos 40. Aos poucos fui conquistando a afeição das amigas do ambiente e o resto, bem, o resto é paisagem e absorver todo o prazer que as minhas bicicletas me têm proporcionado.
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4 respostas a rodopiando o Douro

  1. Nelson Branco diz:

    Mais uma grande aventura Paulo!!! Fantásticos. O Douro nunca desilude e de bicicleta ainda é, certamente, mais especial…
    Fico deste lado a aguardar mais relatos por estradas desertas e fascinantes (como diz o nosso amigo AC).

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  2. paulofski diz:

    Ainda mais fascinante do que as estradas desertas por onde passamos são os longos momentos de amizade e são convívio que partilhamos.

    Abraço

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apenas pedalar ao nosso ritmo.