O Algarve promove naturalmente as suas belas praias de água tépida, as altas temperaturas, o sol inclemente que estorrica turistas, maioritariamente súbditos de sua majestade, a rai… aquele que finalmente diz ser rei, e eu reservo quase sempre uma semaninha do ano para me fazer à autoestrada com a bicicleta na bagagem rumo ao Reino dos Algarves.
Setembro ainda é verão. É o mês da nossa preferência para estender as toalhas nas praias algarvias, que se mantêm apetecíveis, com água quentinha, temperaturas altas e onde os raios ultravioletas torram com a mesma intensidade o lombo dos bifes, que têm férias e euros que nunca mais acabam. Seja como for, Setembro é para mim o melhor mês para uns dias de descanso, seja onde for, só que ultimamente as depressões climáticas oriundas do Atlântico não me têm dado descanso e têm tido a mesma ideia! Ora, em depressão estou eu, caro São Pedro, e é por isso que durante todo ano anseio o tempo de férias mas com bom tempo. Percebeu?
Se são as alterações climáticas no seu pior, Mr. Murphy no seu melhor, o que sei é que de há três anos a esta parte tenho-me deparado com verdadeiros dias de tempestade e que nos impedem de fazer aquilo que o Algarve mais promove. Pronto, ok, a chuva faz falta, estamos em seca severa, coisa e tal, mas c´um raio, a Danielle podia ter chegado uma semaninha mais cedo, ou mais tarde, sei lá!
O Algarve é muito mais que as praias e o sol. Tem belas estradas para pedalar com sítios magníficos para explorar. Tenho a boa alternativa de ensejar outras experiências e como tal a bicicleta vai comigo! Acabaram-se as desculpas. Não podendo dar os habituais mergulhos no mar calminho, é sempre boa altura levar com um desafio a sério. Aproveitar uma manhã nublosa e fresca para um bom par de horas de pedalada que certamente perdurará na memória. Subir a mítica Fóia que há muito estava na minha lista.
Na Serra de Monchique poderei disfrutar de uma das mais belas montanhas do país e provar algumas “bombocas”, como gosta de dizer a Sónia Ramalho, enquanto me deixo levar pelo ambiente que a vista pouco alcança e que conta com o agrado e a fama de uma etapa de montanha da Volta ao Algarve em bicicleta. O Alto da Fóia. É sempre agradável acabar a subida e dirimir com aqueles que estão comigo a linha da meta, mas não, atravesso a porta do prédio e estava só, com os meus pensamentos e com pele de galinha, mais por causa do frio.
Mal saí de Portimão para norte, ao longo da N124, fui envolvido pelo nevoeiro. Depois a morrinha e, quando a perspectiva de melhoria esmorece, desaba sobre o meu capacete uma chuva certinha. Olha, afinal estou no Porto, queres ver! Pensei e desviei para a calma estrada N266. A água das fontes, dos ribeiros e dos rios desapareceu mas naquela manhã escorria a potes entre os meus pneus e o alcatrão. Encharcado dos pés à cabeça, em prole do meu conforto deixou de chover e a temperatura subiu gradualmente com o raiar da manhã. As nuvens abriram e permitiam ver o azul do céu. Sinto que a estrada sobe e cruzo a sossegada vila termal das Caldas de Monchique. Os edifícios cor de pastel e o pequeno vale verdejante não foram mágicos para o meu reumático. Talvez um banho nas águas levemente sulfurosas com 32ºC fosse mais eficaz. Com o corpo mais aquecido chego a Monchique.
A partir daí a estrada empina e bem. Desperto. Estou atento à Natureza. É tão fácil mergulhar na natureza, mesmo lutando contra a inclinação do alcatrão. Durante a ascensão o meu olhar perde-se na vegetação. Há quem lhe chame “O Jardim do Algarve” e o título é merecido. Ali há árvores de grande porte como carvalhos, sobreiros, camélias e magnólias, espécies raras por aquelas bandas. Atravesso a paisagem, pedalada a pedalada, vendo, ouvindo, cheirando e sentindo cada vez mais as pernas. O astro rei espreita mas é sol de pouca dura. O nevoeiro esconde o cocuruto da montanha, e quando dou por ele estou completamente embrenhado numa espécie de mantra… e com fome. A banana ia fazendo o seu efeito e a paisagem que descortinava ia se alterando para lá das janelas abertas da bicicleta. Tudo o que se sente é algo que fica oculto a quem sobe aquilo de carro.
Depois da curva à direita aquilo que me desvenda a neblina não é El Rei D. Sebastião de bicicleta mas o monumento de homenagem ao ciclismo inaugurado há coisa de um ano.
“A peça imortaliza a chegada de Remco Evenepoel ao ponto mais alto do Algarve, celebrando a vitória carregada de esforço. Demonstra que a subida ao alto da Fóia, em bicicleta, não está ao alcance de todos e constitui também uma prova de superação que todos os dias atrai dezenas de ciclistas aquele território.”
Gostei da ideia, do Remco eu não sou muito seu fã. Ele tem o seu valor, que tem, mas sempre achei o moço demasiado emproado. E agora que é campeão do mundo… Ok, pronto, parabéns ao rapaz que bem os merece.
Andei por ali uns minutos mas não se via grande coisa. O que eu vi foi esta “pedrinha preciosa”, #koesterstenen, deixada ali de propósito para que eu a encontrasse e a levasse comigo, a viajar pelo mundo. Bem, a minha viagem é apenas uma etapa da Volta a Portugal, mas aceitei o desígnio e no regresso ao Porto #Bas viajou connosco.
São quase dez da manhã mas nem parece. Faço-me de novo à mesma estrada, aproveitando a boleia da descida. Sigo agora em afável companhia com o som do carreto. O corpo queixa-se do frio, mas os pulmões agradecem o ar puro. O nevoeiro esbateu-se um pouco e do panorama rochoso e árido, que não permite mais do que vegetação rasteira, ao descer alguns quilómetros volto a entrar num cenário verdejante com alguns tons outonais, aqui e ali.
Um azul intenso do céu desvenda-se entre as nuvens e timidos raios de sol espraiam-se montanha abaixo. Ao longe, a sul, vislumbro Portimão e vou descendo com cuidado a serra na sua acentuada inclinação, antes porém com a premissa de parar algures para confortar a barriga. À saída de Monchique um tolde com os dizeres “Pastelaria O Lanche” levou-me a acreditar que teria ali muito por onde escolher. Puro engano. Para comer, a senhora atrás do balcão dizia-me não ter mais nada do que queques e bolinhos de torresmos! – Então é um queque e um café, faxabôre.
– Minha senhora, podia faxabôre encher este bidão com água?
– A água é da torneira?
– Sim, pode ser, afinal é água de Monchique, portanto é agua boa, eheheh… Se fosse aguardente de medronho ainda voltava para trás e subia à Fóia outra vez, eheheh…
A senhora não esboçou um sorriso. Devolveu-me o bidão, paguei, e, depois de ir verter águas segui caminho em direção ao mar, pela mesma estrada, menos húmida, mais concorrida, mais fácil, voando com as cegonhas e deixando a roupa secar.
Lesto, saio de casa para o trabalho. Pedalo a curta subida da ciclovia da Prelada sob a VCI e vejo-o, compenetrado na paisagem. Ele pinta-a, eu fotografo. Em comum a frescura da manhã e a bicicleta. Tal como eu, aproveita cada momento.
Para a pedalada de sábado passado eu tinha vários planos em mente, sendo o mais importante, e presente, ir dar um beijinho de parabéns à minha querida Tia Sílvia. A estrada N108 é o chão que me leva ao Lugar que tem um lugar cativo no meu coração, o Castelo, em Frende, Baião, mas naquela manhã, mais ou menos a meio do caminho, tinha previsto um pequeno desvio na rota. Levava na cabeça a intenção de, após passar Entre-os-Rios à passagem do quilómetro 43, desviar-me da estrada e descer até uma aldeia junto ao Douro, Bitetos, para ir admirar e registar o belo mural que Mr. Dheo dedicou a Carmen Miranda. Em função do destino final, vale bem a pena estremecer o esqueleto naquela abrupta descida de paralelepípedos, procurar a bela casinha Douro Blue House para depois enfrentar a subida de volta, pois há algumas escapatórias que podem tornar a viagem ainda mais agradável.
Mr.Dheo é um artista de street art de renome mundial. Natural de Gaia, com uma carreira longa no graffiti e arte urbana, o seu trabalho é caracterizado por um estilo foto realista. Dos seus trabalhos icónicos, espalhados um pouco por todo o lado, quer na sua cidade natal quer internacionalmente, retratam maioritariamente temas sociais, enquanto outros traduzem num grande impacto mediático. São alguns exemplos o retrato da enfermeira Sofia intitulado “Anjos na Terra”, pintado nas ruínas de uma fábrica da Granja durante a primeira pandemia da Covid-19; Outro, “Quando a noite cai”, é uma marcante mensagem sobre os sem-abrigo e que pode ser vista na Foz Velha do Porto; “Lutador pela liberdade”, o mais recente mural de Mr.Dheo num “apelo à paz” e “numa homenagem à resistência do povo ucraniano” está exposto numa rua de Matosinhos. Da vasta panóplia de trabalhos que podem ser admirados por todos, aquele que terá maior simbolismo, o mural da Trindade intitulado “Porto Nobre e Leal”, uma homenagem ao seu pai e à sua cidade, é o primeiro mural oficial realizado no Porto depois de 14 anos de censura camarária.
Noite cerrada, ainda não haviam soado as quatro badaladas no relógio da igreja e já Zé Maria encaminhava o macho à rédea. O carrego de couves tronchudas e alfaces, arrancadas à terra de véspera, encapotavam o vagaroso animal. A pé, tinham pela frente um longo e tortuoso caminho. Ascender os montes por Santo Amaro, descer ao rio por Cortes da Veiga, atravessar o Douro na ponte do Pocinho, transpor o sopé da serra até Moncorvo para, ainda o sol mal havia despontado, abancar-se no mercado municipal. Regressava a casa, às Mós, só quando vendesse a mercadoria. Retomava depois o mesmo caminho, inverso mas sempre penoso, com o macho refreado ao fardo de sacos de sementes e de farinha.
O meu avô teve uma vida dura, uma longa vida que não era feita do que se tem como adquirido mas do que se podia produzir com muito suor e trabalho. Eu tenho vida boa e com dias de férias para desfrutar. A casinha da aldeia, onde viveram os meus avós, alberga agora uma velha burra que não anda a palha, Dona Etielbina, que para lá levei há tempos para a sua reforma dourada. Ali ficou, a encher-se de teias de aranha, mas está lá, sempre disponível para me dar pedalada, depois de lhe encher os pneus é claro. Como desta vez não levei nenhuma das outras parceiras, foi automático o sentimento de apreço que lhe conservo, provando do seu peso, subindo antigas estradas e largando os travões nos montes, desbravando trilhos e empurrando as dificuldades que nos surgiam pelo caminho, rumo ao Douro.
Voltando às sendas do meu avô, cruzada a ponte sobre o rio, os cascos do macho passavam agora a matrucar o piche da estrada para Moncorvo. A N220, entretanto despromovida a estrada municipal, ondula esquecida pelos contornos da Serra do Reboredo. Esta sua rotineira viagem não previa o benefício do transporte no comboio que na outra encosta cuspia fumo, serra acima pelo Vale do Sabor.
A Linha Ferroviária do Sabor ligava a Linha do Douro até Duas Igrejas, às portas de Miranda do Douro. A solução para transpor o rio foi a construção de uma ponte metálica com dois tabuleiros, um ferroviário e outro rodoviário. Concluída a ponte do Pocinho em 1909, o primeiro troço da Linha do Sabor foi inaugurado em 1911, até Carviçais, ligando os distritos da Guarda e de Bragança e passando por Torre de Moncorvo. Os 105 quilómetros totais da linha ficaram concluídos em 1938, tendo existido circulação ferroviária em toda a sua extensão até janeiro de 1989.
A centenária ponte foi desde essa data desactivada e ficou abandonada. Há mais de vinte anos que por lá passou o último comboio de linha estreita, enquanto o trânsito rodoviário se fazia já pela barragem, entretanto erguida. Esta infraestrutura, pela sua importância histórica e patrimonial, seria de todo o interesse ser preservada, voltando a ligar a Linha do Douro à antiga Linha do Sabor pelo seu traçado original. Os canais de ligação à ponte em ambas as margens estão lá, e permitindoa sua travessia em segurança, pedonal e velocipédica, traria sobretudo vantagens ao nível da mobilidade e do cicloturismo, uma vez que não se antevê que algum dia volte a servir para o transporte ferroviário ou rodoviário.
Recentemente o município de Torre de Moncorvo recuperou o troço da antiga linha férrea que liga a vila transmontana e a estação do Pocinho, numa extensão de 10,6 quilómetros, passando assim a chamada Ecopista do Sabor a dispor de 34 quilómetros para desfrute dos caminhantes e ciclistas, residentes e visitantes. A pista desenvolve-se no sentido norte/nascente pelo sopé da Serra do Reboredo, em toda a sua extensão num declive suave por se tratar de uma antiga linha ferroviária. Este troço oferece uma rota turística, ecológica e desportiva, um espaço de verdadeira beleza vocacionado para se fazer de bicicleta. Em pleno Alto Douro Vinhateiro e Rede Natura, contempla a sua envolvente cénica com vistas soberbas para o Rio Douro, para as encostas em socalcos da Quinta de Vale Meão, para a verdejante Foz do Rio Sabor e para a excecional paisagem do Vale da Vilariça e das serras circundantes.
Como agora é possível transportar bicicletas nos comboios MiraDouro (de maio a outubro fazem-se 6 viagens por dia, do Porto até ao Pocinho) esta Ecopista é uma excelente proposta para complementar uma bela viagem. Tipo dois em um: uma viagem de comboio pelos 172 quilómetros actuais da Linha do Douro, oportunidade para ir admirando as magníficas vistas panorâmicas do Douro Vinhateiro por uma janela em movimento para, passadas cerca de 3 horas, quando desembarcar, “embiclar” num fantástico e memorável passeio ao ritmo das pernas e dos pedais da sua bicicleta.
A fim de não ter percalços e contratempos deve-se preparar alguma logística para se praticar uma pedalada com conforto. O percurso é fácil de fazer, o declive não ultrapassa os 2,5%. O pavimento é em terra batida, ideal para os praticantes de BTT bem como para as bicicletas Gravel. É conveniente se precaver com água e reforço alimentar. Na primeira dezena de quilómetros não se encontram pontos de água, e dos que surgiram em Moncorvo, junto à antiga estação, só 1 ou 2 bebedouros é que funcionam. Se desejar fazer uma pausa, nos vários miradouros ao longo do percurso encontram-se painéis de informação e espaço para estacionamento (!!!), daqueles tradicionais e disfuncionais “entorta rodas”.
Larinho, Carvalhal e Carviçais, são atravessadas pela Ecopista, sendo uma boa oportunidade para “sair da linha” e visitar as aldeias. Com a excepção de Torre de Moncorvo, para se fazer um reabastecimento mais consistente sei que existe um café com esplanada na recuperada estação de Larinho. O “fim da linha” é em Carviçais, mas neste passeio não cheguei até lá. O dever e o estômago falaram mais alto, vai daí dei meia volta e desci a Ecopista com redobrado prazer, a toda a velocidade. É aconselhável redobrar de cuidados quando se atravessam algumas barreiras existentes nos cruzamentos. Outro ponto de maior atenção, junto à estação de Moncorvo encontram-se vestígios dos carris da antiga linha. Não estranhei que, numa antiga passagem de nível, uma daquelas carrinhas brancas, dos que estão sempre a trabalhar e “são só cinco minutos”, jazia abandonada em plena pista! O regresso ao Pocinho foi rápido e o repasto n’ O Gaveto foi bom e barato (ai aquelas favas guisadas, hummm).
O céu cada vez mais escurecido prometia molha, pois prometia, mas como naquela terra infelizmente a chuva é coisa muito pouco vista, deu-me vontade de ir à volta por Foz Côa e por Freixo de Numão, deixando para outra altura “cortar caminho” pelo íngreme Caminho da Costa. Coisa estranha, ou não, ao longo do dia encontrei os fontanários secos ou com um fino fio d´agua. Vá lá que não estava o calor tórrido da semana anterior, mas não escapei às primeiras chuvas que me apanharam em plena subida pela N222. Ainda bem que choveu a potes nos dias seguintes. Deu pelo menos para refrescar a terra ressequida e atenuar um pouquinho a seca extrema que a região vive. Assim, as pedaladas pensadas para os restantes dias ficaram sem efeito, mas sem remorsos pois dona Etielbina não vai ficar com saudades minhas, tenho a certeza.
Foz do Rio Teixeira, portal para “os bons velhos tempos”
Longas temporadas da minha infância foram magnificamente vividas no Lugar do Castelo, em Frende, a aldeia dos meus avós maternos. Sempre que lá vou, qualquer árvore, as pedras, todos os possíveis aromas têm o poder de soltar memórias que me remetem a momentos mágicos. Das muitas aventuras que faziam parte do nosso quotidiano, vividas juntamente com o meu irmão Tó e os amigos da aldeia. De autênticas loucuras, banais para eles mas absolutamente arrojadas para dois ousados rapazes do Porto que iam para casa dos avós gozar umas semanas de férias.
Quantas situações difíceis em que escapamos por um triz são agora motivos de risos. Quantas reprimendas ouvi do meu avô por nos ter visto em brincadeiras junto à linha do comboio. Quantas proezas da mais pura irresponsabilidade, abusando da benevolência da minha tia Sílvia, nós sobrevivemos. Da nossa inconsciência, onde as aventuras encorajadas pelos rapazes da aldeia nos faziam superar os mais arriscados desafios. Dos dias de absoluta rebeldia, num sítio onde dois irmãos da cidade viviam livres como se fossem personagens de um dos contos do Tom Sawyer e onde o Douro era o nosso Mississípi. Em outras palavras, eram os bons velhos tempos.
O Douro não é um rio que se possa confiar, mas o Tónio, o Rui, o Quim, tinham dele uma compreensão destemida. Uma das coisas inevitáveis nos raros reencontros com um destes amigos “do Castelo” é relembrar as nossas maluqueiras. Atravessar o rio a nado tinha o seu quinhão de ciência e de loucura. Ainda mais quando as razões para o fazer não seriam as mais louváveis. Eu encontrava sempre razões lógicas para, pelo menos, tentar desencoraja-los, mas nunca tinha sucesso nas minhas intenções. Para eles a corrente do rio nunca estava forte, a água nunca estava fria, os cães na outra banda nunca estavam soltos e o lavrador nunca estava vigilante. Mas não era eu que ia dar a parte de fraco. Ir pescar para o rio era quase sempre a desculpa para a malta dar umas braçadas até à outra banda, ir comer das cerejas de Resende! Depois era tentar não sermos apanhados pelo velhote, tentar chegar ao rio sem levar uma dentada dos cães, nadar sem que que nos faltasse as forças.
O olhar retrospectivo oferece uma percepção dos reais perigos onde nos metíamos. A distância com o passado faz com que mesmo os momentos menos bons sejam celebrados. Claro que em toda a vida há ocasiões mais difíceis e outras mais agradáveis. Os bons velhos tempos, por melhores que tenham sido não constituem um paraíso perdido. O paraíso e as memórias continuam lá e sempre me recebem de braços abertos. Só não me atrevo voltar a atravessar o rio a nado para ir “gamar” cerejas. Agora, se as quero provar, as apanhar das cerejeiras com a permissão, ou não, do dono, pego na bicicleta e pedalo Douro afora com um grupo de amigos, para depois voltar a casa no comboio MiraDouro.
Ir às cerejas já não significa só pendurá-las nas orelhas a fazer de brincos.
Aqui vou eu a ultrapassar o utilizador vulnerável da via que circula à minha frente. Para a realização da manobra ocupei o lado da faixa de rodagem destinado à circulação em sentido contrário, abrandando a velocidade e guardando a distância lateral mínima de 1,5 metros…
Decorria o mês de novembro do ano pandémico de 2021 e um “plim” sonoro fez tremer o telemóvel:
“Bom dia. Estarás interessado /disponível para fazer a Flèche?”, pergunta-me o Zé Ferreira! O convite ficou pendurado pois até abril muito covid ainda iria passar por debaixo das máscaras.
Chegamos a março e o convite ressurge: “Alinhavam-se as Flèches… interessado?” Ora bem, continuando eu imune ao bicho e sem compromissos para o fim-de-semana de 9 e 10 de abril… “Olá Zé… sim, porque não!”.
Quando percebi que este ano o meu primeiro evento randonneur seria uma “Flèche”, anotei que seria um passeio mais exigente para mim. O facto de metade do percurso desenhado pelo Zé Ferreira ir “descer” o Douro desde a foz do Côa até à Foz do Porto, atenuou as minhas hesitações… “Ah, é canja”… O caraças, menino Paulo! Tens de te pôr ao caminho e até lá convém que faças um treininho em condições. Meu dito e meu feito.
“Flèche” é um evento de equipa que vai de um ponto a outro numa direção sem retrocesso. Há uma tonelada de regras – mais do que em outros brevets – mas na essência é pedalar de forma constante por um dia. Não é preciso ir muito rápido (os 25 km finais devem ser percorridos nas últimas duas horas de passeio) ou muito lento (sem adormecer nas paragens por mais de 2 horas). O importante é manter a equipa unida do início ao fim e 24 horas depois todos se encontrarem no mesmo local de destino, enchendo a pança e trocando brevets… histórias.
foto do Miranda
A rota delineada, toda ela, atravessa território bastante familiar, sem muitas surpresas. Em relação às anteriores edições, embora não tivesse subidas terrivelmente íngremes e montanhosas, o desenho desta edição tinha várias colinas adicionadas à rota, em especial na primeira metade do percurso pela N324, N222 e N108. Depois do jantar, na metade nocturna iríamos descansar as pernas pela sonolenta e sensaborona N109.
foto do Ferreira
Durante os vários dias que antecederam a nossa Flèche seguiu-se a preocupação com os preparativos, especialmente estando atento aos avisos meteorológicos. Quanto à logística do transporte e dormida na véspera do depart estava garantida. Com a facilidade do transporte de bicicletas no comboio Miradouro, foi só escolher o melhor horário. No plano prévio a dormida e depart seria em Vila Nova de Fozcôa, mas eu contrapus com o convite de uma boa noite de sono numa pequenina casinha em Mós, a aldeia dos meus avós, e dali sair à hora certa, garantido que estava o primeiro carimbo no cartão brevet.
foto do Ferreira
Na verdade, a Flèche começa de véspera. Desta vez, a mesma bicicleta que me tem aturado nos últimos doze anos, a fiel Gorka, foi chamada ao serviço. Besuntei-lhe as engrenagens, montei-lhe o saco Carradice na traseira, luzes e mais luzes de reserva, mas nada high-tech, nada de gêpêésses. Estava confiante de que não haveriam surpresas com o meu equipamento.
foto e bicicleta do Miranda
O comboio chega à estação de Freixo de Numão – Mós do Douro à tabela e bem lavado pela chuva persistente desde o Porto. Felizmente o restaurante Bago D’Ouro fica mesmo ao lado da estação. Eu e o Mário já tínhamos praticamente acabado com as entradas quando entram os encharcados Zé Ferreira e Manuel Miranda, que viajando no comboio prévio arriscaram umas pedaladas pelas cercanias. A chuva não dava tréguas e piorou a valer assim que saímos do restaurante na ligação nocturna até à casa da aldeia. Por debaixo do gorro impermeável, na minha cabeça não me saía a ideia que iríamos ter uma Flèche bem molhada. Chegados, assim que meto as chaves na fechadura a chuva pára!
Choveu copiosamente toda a noite mas o sábado amanheceu claro. Estava um dia fantástico, maravilhosamente ensolarado. O Ferreira entregou-nos os cartões e fomos para o café da aldeia, O Lagar, matar algum tempo antes do início oficial da coisa. Com o pequeno-almoço tomado, cartão carimbado, o relógio da igreja batia as dez horas em ponto quando nos fizemos ao caminho. Deu-se finalmente início às hostilidades mas, a bem da verdade, o começo da jornada seria uma coisa linda de se ver. Pedalar numa manhã perfeita pelas velhas estradas que serpenteiam um vale encantado. Que mais podíamos desejar.
Após uma curta descida pisamos o asfalto desgastado da cénica N324 e, lentamente, fomos subindo por uma boa dezena de quilómetros. O cérebro comandava as pernas, e as minhas pernas pareciam bastante vigorosas. Na subida ia ouvindo os protestos dos restantes, que eu estava a impor um ritmo demasiado forte! Afinal, uma Flèche deve ser relaxada, certo? Depois de cruzarmos Freixo de Numão, na Touça viramos a oeste e entramos na mítica N222.
foto do Ferreira
Felizmente, a maior parte do acumulado do nosso passeio estava reservado para a primeira metade. As subidas longas e as pernas frescas mantinham o ânimo. Havíamos entrado na porta de entrada para outro reino, um planalto tranquilo, pontilhado com uma sucessão encantadora de aldeias de xisto, castelos e texturas rurais. Parando casualmente e tirando fotos uns dos outros, mentalmente foi revigorante estar serpenteando o sobe e desce de uma estrada que tanto aprecio. Era pacífico e sereno, sem quase nenhum tráfego naquela hora da manhã, onde a certa altura fomos surpreendidos por uma raposa que atravessou a estrada mesmo à nossa frente.
O sinal de STOP nem seria necessário pois a tabuleta anunciando o prato do dia fez logo apertar os travões e fazer crescer água na boca ao pessoal. Ervedosa do Douro marca a primeira cinquentena de quilómetros e o local ideal para um substancial almoço. Dali em diante seria sempre a descer, e a descida suave e sinuosa até ao rio Douro seria um bom tónico.
Enquanto pedalávamos a bom ritmo pela chamada “melhor estrada do mundo”, confesso que estava um pouco apreensivo quanto ao comportamento de alguns automobilistas mais agressivos, como vivemos há tempos num brevet por esse trecho da região vinícola. O movimentado tráfego de fim-de-semana era o normal e os carros mantiveram uma distância respeitosa. Depois de uma horinha rolante e divertida, ideal para a digestão do almoço, estávamos a pisar e a parar nas travessas de madeira da ponte pedonal da Régua, para mais uns registos fotográficos.
Durante toda a manhã não sentimos algum vento digno desse nome, mas, quando ao longo da N108 e assim que começamos a subir de cota, tivemos a certeza que o vento estava a soprar de oeste. Ora bem, não é grande coisa, pensamos, mas nas subidas mais expostas ele fazia-nos sentir bem a sua presença. Para além disso o meu joelho esquerdo começava a atrapalhar a minha progressão. Nos pontos da estrada que mais empinava eu não estava a conseguir acompanhar o ritmo deles. Estava com sérias dificuldades, principalmente em pedalar de pé. Vai daí fui para a frente impor o meu nosso ritmo.
O conta-quilómetros chegava aos cem, entravamos no Distrito do Porto e na vila de Frende, terra natal da minha mãe onde inevitavelmente uma lágrima rebelde de emoção verteu. Um pouco mais à frente junto-me à equipa numa paragem técnica prevista para um lanchinho rápido. A ondulante estrada não mata mas mói. Por esta altura, em termos de resistência física sentia-me bem, já o joelho não era da mesma opinião. Mas, talvez fosse o resultado da minha excitação por estar novamente neste troço da estrada! Talvez o entusiasmo pelo clima agradável!… O que é certo é que me ia abstraindo da dor com as paisagens e a conversa, e isso resultava.
Antes da estrada se desviar rapidamente e descer para Ribadouro, convido a malta a soltar o rabo do selim na mercearia de Dona Mariazinha. Este ponto é para mim paragem obrigatória. É sabido que a babaninha é um valioso aliado para todos os ciclistas. Tiro uma de um cacho de babanas amarelinhas e pergunto o preço enquanto a vou descascando. Nisto o foco dos restantes esfomeados vira-se para um canto onde um cesto de bananas de casca escura, pretas de tão maduras que estavam, e não se fazem rogados. “Olhe, essas estão aí de lado para levar para casa, mas podem comer à vontade que não lhes cobro nada”. É D. Mariazinha, diz-que a fome é negra! As bananas estavam no ponto e não sobraram muitas.
foto do Miranda
Descidos novamente à cota do rio, a corrente do Douro conduziria a malta de pernas doridas por ondulantes e fascinantes quilómetros com os estômagos renovados. Quer dizer, renovados mas por pouco tempo. Chegamos à Senhora do Monte em Sebolido um pouco atrasados quanto à nossa previsão. A 30 quilómetros do Porto esta pastelaria é um local de paragem popular para os ciclistas que frequentam esta estrada e, aquela hora, a pastelaria estava por nossa conta.
foto do Ferreira
Com o sol e o vento de frente, fomos sentindo a pressão rodoviária à medida que nos íamos aproximando de Gaia para a segunda carimbadela do dia. Atravessado a pé o tabuleiro inferior da Ponte Luiz I, fez-se depois um pequeno desvio a fugir da turistada só para visitar o belo espaço gastronómico Cozinha da Ci, da minha amiga Cidália, e espetar um mega carimbo no cartão. Lá ficou a vontade de jantar algumas das suas iguarias mas estávamos apenas de passagem, pois o repasto estava a ser confecionado na cozinha do meu pai na Praia da Madalena.
Em muitas ocasiões sou inundado de perguntas, requerendo uma explicação lógica porque diabos participo nestas maluqueiras por longas distâncias! Entendo que isso lhes cause alguma apreciação de sofrimento, mas não entendem o ponto de vista do randonneur, que há sempre um verso da medalha, um dos mais intensos mas simples confortos da vida. Depois de pedalar centenas de quilómetros, do amanhecer ao anoitecer, poder devorar aquele saboroso prato de arroz com feijão. A fome alarve transformará qualquer tigela de sopa aguada num prato gourmet preparado por um chef com estrela Michelin. O nosso muito obrigado à Dona Cândida pelo maravilhoso jantar que nos serviu e que foi o combustível ideal para nos garantir que ainda estávamos no caminho certo. Depois de tomado o cafezinho e reforçadas as armaduras, também não é preciso ser um meteorologista para vos dizer de que lado o vento soprava!
foto do Ferreira
De norte para sul o percurso seria igual a outras flèches e pedaladas, sem grande interesse a não ser as conversas. Tendo o privilégio de estar a pedalar ao lado de três finishers do Paris-Brest-Paris, a minha curiosidade foi aguçando à medida que ia ouvindo in loco as histórias dos meus amigos. Já havia lido os relatos inspiradores das suas aventuras no PBP 2019 mas agora eu era todo ouvidos. Iam-me pintando um retrato romântico do evento, com multidões à beira da estrada a aplaudir os aventureiros, das bancas com deliciosos banquetes que lhes eram oferecidos, as diversas nacionalidades e diferenças culturais, a variedade de máquinas em desfile, o convívio e amizades com quem atravessaram o interior de França, de leste a oeste. Tenho a certeza que me seduziu ainda mais ouvir o seu entusiasmo, o fascínio que é participar num histórico e prestigiado evento. Estou certo que um pequeno lampejo de interesse se incendiou em mim naquela noite, porém o meu joelho trazia-me de volta à terra e fazia-me lembrar que não tenho perfil de super randonneur. Eu estava ali mais uma vez a tentar sobreviver a uma Flèche, a tentar completar nem um terço do que eles pedalaram!
Então lá chega o momento em que qualquer ciclista, mesmo um Mathieu van der Poel (MVP), não está imune: Um furo. No bréu da noite o Mário não tem hipótese em evitar uma cratera no asfalto e faz um buraco na câmara-de-ar. Entre retirar da roda um pneu borrado de líquido selante, recolocar uma câmara nova, enfiar o pneu no aro e bombeá-lo com a bomba xpto do Ferreira, um processo simples e rápido para qualquer um de nós amadores, menos para o MVP que tem quem o faça por ele, seria coisa para uns cinco minutos. Mas não! Entre nós, com tantos anos a virar frangos… e a trocar pneus, todos concordamos numa coisa: A bomba-de-ar não teve culpa. Os experts é que não estavam a dar com o gato. Por esta altura já se ouvia o despertar de um galo.
Em Aveiro, como o Mário estava nas suas sete quintas deixamos que ele tomasse conta das rédeas. Depois de deglutida uma tripa doce, a senhora do estaminé recusou-se a preparar-me um cachorro quente, tivemos de preencher uma procuração e esperar a burocracia necessária para que nos tirasse quatro cafés. Energias reforçadas, ciclamos por ruas, vias ciclopedonais e pontes da ria de Aveiro até à Costa Nova. Contornamos as Gafanhas até à Praia de Mira. Foi fixe, pois eu pude relaxar e apenas apreciar as estrelas e as luzes vermelhas das eólicas que brilhavam no horizonte.
foto do Ferreira
À medida que pedalávamos mais perto do mar, na neblina, as temperaturas caíram e o vento contrário endureceu. De olhos semicerrados perscrutava a escuridão para além das luzes. A nossa minha velocidade média cai como uma pedra. Não há cafés ou restaurantes abertos às quatro da madrugada a não ser o pestilento tasco do costume de portas abertas no início da longa recta da Tocha. Lá consegui deglutir um mega cachorro hiper quente, que quando voltei à bicicleta ainda esperneava no bucho ao som do reggaeton.
Neste momento eu estava definitivamente a vestir o meu colete do mau humor, tendo aqueles pensamentos existenciais de menino birrento: “Já temos de ir e nem uma meihorinha para descansar o joelho, cara…? Hummm… alguém vai ficar mal-humorado” Fui eu. Esvaziada a garrafa de Sagres preta (por estranho que pareça sabia-me a Super Bock) de pernas e pálpebras pesadas, retomamos a estrada. Sob um céu enluarado, a noite tornou-se silenciosa e pacata, com as conversas ao mínimo indispensável. Retinha no pensamento o zumbido suave de correntes e rodas. O vento contrário não impedia o nosso progresso e o meu joelho parecia ter apreciado a paragem. Estava menos resmungão, mas estava lá.
[Não tenho registo para este espaço pois àquela hora não houve pachorra para motivo fotográfico]
A Serra da Boa Viagem acordou-nos da dormência e mandam-me para a frente impor o meu ritmo. Na subida, pedalando em modo perna-coxinha, onde a perna direita fazia as vezes da perna esquerda, chegamos ao topo com a certeza que depois da descida teríamos de ir algures pedinchar um carimbo. O hotel em Buarcos, onde em sessões anteriores se carimbou o cartão brevet, baldou-se! Por sorte, a farmácia de serviço naquela noite ficava a caminho e, mesmo acordando a farmacêutica do seu merecido descanso, a simpática senhora fez o favor de atender a nossa falsa emergência.
A noite deu lugar a uma manhã cinzenta e enevoada enquanto contornávamos a Figueira da Foz. Um pouco preocupado com meu progresso deficiente e impossibilitado de pedalar em pé quando era necessário ultrapassar alguns topos, deixei os meus companheiros de route liderarem o caminho. A suave neblina da manhã inundava a planície aluvial do Mondego. O sol gradualmente abria as nuvens, espelhando-se no asfalto húmido da N111, e quando chegamos ao último posto de controlo o tempo estava lindo. Já se sentia fome, a meta e um confortável calor.
O nosso controle das 22 horas costuma ser em Montemor-o-Velho, onde abancamos na habitual pastelaria com tempo para um pequeno-almoço reforçado, relaxar até a hora de abalar para cumprir calmamente os derradeiros quilómetros. Pois foi isso que aconteceu nas Flèches anteriores, onde a janela de tempo dava até para tirar uma soneca. Desta vez estávamos mesmo no limite do relógio. Engolido o pastel e carimbado o cartão, lá fui eu meio empenado a lutar contra o sono e a resmungar dos trinta quilómetros que ainda tínhamos pela frente.
De volta à bicicleta, em vez da estrada lunar do costume ao longo do Mondego, desenhou-se uma alternativa menos danosa para os pneus mas mais penosa para as pernas. O cenário era bucólico: campos abertos, cegonhas no ar, ventania nas fuças… e o cheiro pungente de estrume fresco. Talvez tenha sido o efeito psicológico da eminente chegada, sentia-me forte e alerta. Enquanto pedalava no piloto automático, devagar, muito devagar, a moedeira que sentia no joelho abstraiu-me da falta de sono.
Coimbra tem mais enquanto na hora da Flèche concluída. Dez horas em ponto e cruzávamos o Mondego pela ponte de Santa Clara. O quiosque habitual da carimbadela final encontrava-se fechado. Parecia estar há muito fechado, pelo que deu para ver, porventura fruto da crise pandémica. Reunimos com a Equipa Sul na esplanada do restaurante e juntos cumprimos um par de horas a contar as peripécias vividas na jornada, até me servirem o meu muito apetecido, e merecido, prato de tagliatelle com salmão.
foto do Mário
“O importante na vida é ter aventuras.” Alguém disse isto e eu acredito firmemente. A viagem somou 399 quilómetros… mais um e qualquer coisa depois até à estação de comboios. Foi uma jornada exigente mas saborosa. Percorri, montanhas, rios, curvas e rectas de estradas bem conhecidas num dia inteiro. A bem da verdade foram dois dias passados em excelente companhia, pedalando em equipa num verdadeiro espírito randonneiro. O joelho manda dizer que está bem. Mal parou de pedalar e ficou dormente. Eu? Eu estou a recuperar lentamente a função cognitiva superior.
A certa altura na vida de um gajo, quando um gajo atinge uma certa maturidade, ele tem um modo curioso de lidar com essa realidade. Diz que é o tédio da meia-idade.
Aí, uma melancolia extravagante se instala. É um fenómeno evolutivo. Aos poucos ele começa a perceber uma mudança no metabolismo e com os cabelos brancos desponta uma espécie de cobiça: Reavivar a juventude.
Ele acha que merece um pouco mais de diversão na sua viagem diária. Quer voltar a apaixonar-se. Quer afirmar-se. Intensificar a adrenalina. Ambiciona a exuberância e aparência exclusivas que um topo de gama proporciona.
Ferdinand Porsche não conseguia encontrar o carro dos seus sonhos, vai daí, decidiu construí-lo com as próprias mãos.
Eu não conseguia encontrar a bicla dos meus sonhos, vai daí, depois de juntar as peças, muitas delas em segunda mão, na Velo Invicta “construi” Sua Alteza.
Foi numa bela noite de copos, faz hoje 10 aninhos.
Na bicicleta cada tarde é diferente. O caminho é diferente, o tempo é diferente, e diferente é o meu estado de espírito quando pico o ponto à saída do trabalho. Pedalar ao longo da cidade é uma das alegrias que tenho. É meio caminho andado pedalado para voltar a boa disposição.
Num ritual de mobilidade, numa rota aleatória, a cada retorno a casa, todas as tardes encontro sempre algo diferente que me detém a pedalada: um velho amigo para saudar, boas e más atitudes que me fazem pensar, um fugaz momento que de novo me liberta a mente e me faz fantasiar.
Escolher um título assim parece banal para quem não alterou muito as suas rotinas em cima de um selim. Simplificando, o tema tem tudo a ver com esta pandemia prolongada em que definhamos, com confinamentos, cercos, testes e o diabo a quatro… sete ou oito variantes, já nem sei!
Na realidade, nenhum de nós está realmente bem no que está relacionado com a saúde mental. Uma definição de definhar é uma sensação de estagnação e vazio. Certamente, nesta comunidade incrível de aficionados do ciclismo muitos de nós deverá estar a sentir o mesmo, mesmo não parando de dar ao pedal.
O que sinto nas pessoas não é depressão, é a sensação de que as coisas estão um tanto ou quanto sem alegria e sem objetivo. Negligenciar a saúde mental pode entorpecer a motivação e o foco, passando o tempo parado, olhando para sua vida através de um ecrã ou de um pára-brisas enevoado.
Em vez de mergulhar a cabeça na areia e de nos auto-clausurarmos, a actividade de pedalar, especialmente para quem utiliza a bicicleta diariamente, para e do trabalho, tem esta coisa boa de dar uma boa razão para cuidar da mente, permitir o escape ao teletrabalho e ao sedentarismo. O que não fazia há tempos era um dia assim, a livre convivência de pedalar com amigos.
Queria voltar com eles para as estradas abertas, para as mesmas estradas que ultimamente tenho pedalado sozinho. Queria reviver um qualquer passeio que com eles fiz no passado. Queria lembrar um dos melhores dias que já tive numa bicicleta. Queria recordar o nosso grande amigo Jacinto, que quis o destino nos levar sem pré-aviso, o corpo mas não a sua alma que sempre estará, e esteve, ao nosso lado.
Ao nascer do sol do último dia do ano, eu, o Rui e o Couto, nos juntamos e pedalamos para norte, conversando e almejando dias melhores. Os raios da manhã fluíram livres através da brisa fresca, sob um sol luminoso. A minha mente estava serena, o ritmo pausado e adequado para, em harmonia, continuar a viagem em boa companhia.
Horas se passaram e as pernas continuaram, rodando os pedais em consonância com o ritmo das conversas e dos reencontros. Na tranquilidade da ecopista, em transe com tudo o que via e ouvia… Um melro perfurou o silêncio quando abandonou o seu poleiro, sobrevoou a minha cabeça, e na minha frente ficou a flutuar por alguns metros, como que para me dizer que eu estava no caminho certo.
Sabendo de antemão o que vinha depois de cada curva, eu estava ali desconhecendo tudo, como se fosse a primeira vez que pedalasse por esses caminhos. Maravilhado com cada paisagem, a querer tirar fotos a tudo, a cada cenário, sabendo que seria suficiente tirar fotografias com os próprios olhos.
Um dia de sol perfeitamente claro e quente demais para a época do ano. Ao longo da manhã nos deparávamos com um horizonte cada vez mais nítido, entre um verde brilhante contra o céu azul ofuscante. A natureza estava oferecendo a chance para a nossa mente relaxar. A bicicleta estava proporcionando o impulso para nos livrarmos das preocupações, dúvidas ou tristezas.
Enquanto rodávamos lentamente para sul, antes de irmos ao encontro com o oceano, o estômago reclamou. O almoço nos brindou mais uma vez com o valor da amizade, da vontade de estar junto. Nenhuma grande decisão na vida foi tomada naquele dia, mas uma tranquilidade no pensamento surgiu, por estar a disfrutar da boa companhia, a ouvir, a sorrir, a celebrar.
E para acabar uma pequena confraternização, afinal de contas é para isso que estamos aqui. A pedalada é só uma desculpa.
Depois de um longo e completo dia, o regresso a casa trouxe novos objectivos, embora pareça menos importante agora do que é a minha perspectiva, do que um longo dia de bicicleta realmente significa. Eu me senti revigorado, não pela distância, mas pelo tempo que passei com velhos amigos. BOM ANO.