Decidido a cumprir a minha terceira Flèche, um dia inteiro combinando os prazeres das pedaladas com as exigências do ciclismo de longa distância, respondi afirmativamente ao desafio do Manuel Miranda e fui tentar concluir com êxito esta aventura pela segunda vez. Escolhido o mesmo roteiro que fizemos há três anos, sábado passado bem cedinho juntei-me ao Luís, vindo de Amarante, e ao Óscar, oriundo de Tomar, para irmos de popó ao encontro do Miranda, em Esposende. De lá para o topo norte lusitano, tivemos a amabilidade de uma boleia numa carrinha espaçosa para quatro randonneurs e quatro biclas.
O départ estava marcado para S. Gregório, em Melgaço, um cantinho no norte lusitano com um fuso horário estranho. O lugarejo pouco mudou desde então. O Café Coelho continua sem o carimbo necessário para borratar o primeiro quadrado do cartão brevet. Para fazer prova da nossa presença, serviu um talão da máquina registadora que ainda estava no horário de inverno! O padeiro não entrega o pão a tempo e horas, e o roamming de nuestros hermanos impõe a sua força. Ultimados os preparativos e afinadas as máquinas, não poderia haver melhor diversidade de montadas: a bela titânica Linskey do Miranda, a resistente Bianchi de alumínio do Óscar, a levezinha Orbea em carbono do Luis e a minha peso-pesado Inbicla Tripas, durinha com’o aço.
“- Mas o que é isso da Flèlche?!”, perguntam vocês e muito bem. As Flèches são um evento velocipédico, social e não-competitivo, onde ciclistas que habitualmente participam nos Brevet Randonneur Mondial, têm mais uma oportunidade de pedalar em conjunto. As “Flèches Portugal” têm origem em diferentes locais de saída, são percorridos por várias equipas de randonneurs que se dirigem rumo a um local de chegada comum, em Coimbra. Estes eventos decorrem segundo o padrão estabelecido para as Flèches Vélocio organizadas pelo Audax Club Parisien. Formada a equipe, são os seus elementos (de 3 a 5) que escolhem uma rota superior a 360 km’s, propõem os postos de controlo a cumprir durante vinte e quatro horas de pedalada em completa autonomia. Chegar é a meta, e na meta o prémio é um prato de massa servido à roda com todos os companheiros de estrada. Depois do almoço, metem-se as bicicletas no comboio e regressamos a casa. Resumindo é isto, mas é claro que algumas peripécias aconteceram nestas 24 horas de pedalada.
Às 10 horas em ponto (ou 11h nos nossos telelés) a bem-aventurada equipa Flèche Minho dava tranquilamente o arranque para um dia inteiro de viagem. Rodamos o pedal e descemos em ritmo relaxado para Melgaço, Monção, terras do genuíno Alvarinho, aproveitando a bela manhã de sol, o ar puro e fresquinho misturado com a paisagem minhota e os odores do campo. Um par de horas depois, cumpríamos o primeiro controlo em Valença. Prosseguindo a pedalada com apetite, em Cerveira fizemos a paragem habitual para almoçar bem e barato na Casa Matriz. De barriga farta, a rotação das pernocas a princípio parecia um pouco pesada mas aos poucos foi engrenando. A N13 dirige-se para o mar e de frente a força do vento aumentava e resfriava. Passamos por Caminha com desejo de rodar para sul, onde, estranhamente, nem me deu vontade de lá ficar para uma sesta! Um ténue nevoeiro marinho escondeu o sol, o ar arrefeceu e foi com uma suave Nortada pelas costas, que nos ia animando o ímpeto, que chegamos a Viana do Castelo, mesmo a horas do lanche no programado posto de controlo.
Com a nossa tourné a correr às mil maravilhas, atravessamos o Lima e seguimos rumo pelo habitual desvio pela Foz do Neiva, até reencontrar a estrada nacional. Mais à frente, em Fão, quando finalizávamos a travessia pela sua famosa ponte sobre o Cávado, fomos surpreendidos por um generoso pelotão de homens, mulheres e crianças, em bicicletas clássicas, muitas pasteleiras e outras mais careiras, dress code tradicional, em animado espírito que só um passeio de bicicleta proporciona. Foi uma feliz coincidência nos termos cruzado com aficionados pelas biclas d’outróra, na terra das clarinhas, com um Tweed Ride à moda de Esposende, o Encontro de Bicicletas Antigas de Marinhas, evento que já vai na sua quinta edição.
Depois de um curto desvio pela marginal da Póvoa de Varzim, à nossa chegada ao Porto tivemos a companhia do amigo Jacinto. Paragem para tentar fazer o controlo num restaurante do Edifício Transparente na Praia de Matosinhos, momento do ocaso que aproveitei para uma bonita foto, semelhante a tantas outras que aqui faço nos meus percursos de comute, do trabalho para casa. Sem mais demoras, bora lá cumprir a parte mais bela do percurso, a que eu já faço de olhos fechados. Com a noite a engolir-nos aos poucos, fomos contornando o Douro, do Porto até Gaia, até a Praia da Madalena onde paramos para jantar. O menu foi uma pratada de massa caseira e uma doce salada de frutas em familiar convívio paternal. Neste momento tinhamos atingido metade do nosso percurso e houve o cuidado de preparar o corpo para a longa e muito fria noite que iríamos atravessar. Next stop: Aveiro
Com as novas e potentes luzes da Tripas apontadas à escuridão, continuamos pela orla marítima de Gaia. Passamos Espinho e encetamos um ritmo bem bom pela N109 (acho que a pratada de massa tinha aditivos), até nos desviarmos para o centro de Aveiro. Aí, há muito que o corpo ordenava sair do selim. Eu, e falo por mim, já tinha os ovos moles! Lá deu para descansar um pouquinho, comer alguma coisa e tomar outro café. Não tendo a menor pretensão de levar o relógio a sério, continuamos pachorrentos pelo trecho meio urbano, meio rural das Gafanhas. Depois de um pequeno equívoco na rota, e consequente meia volta, reencontramos o rumo e seguimos para Mira. Já disse que estava uma noite muuuuito fria?! Pois estava, e a minha garganta já se queixava disso!
A lua gorda enchia o firmamento, parecia espantada com o que andavam quatro doidos varridos a fazer àquela hora. A planura do chão e a noite banhada pelo luar poderia até nos embalar no sono, mas o ar agreste, os cães, as constantes falhas do asfalto, todos os possíveis estímulos nos mantinham acordados de uma forma inapelável. Passamos Mira às quatro badaladas, dentro do horário portanto, mas teríamos ainda de rodar mais um pouco até à Tocha, que tem café aberto aquela hora, para tirar o rabo do selim e marcar mais uma vez o cartão. Comemos e descansamos. Houve quem dormisse, houve quem roncasse, houve quem tentasse. Às cinco e meia estávamos de novo na estrada para enfrentar a enfadonha recta da Tocha, até a estrada empinar finalmente e ultrapassar a pequena Serra da Boa Viagem, a única serra com nome de serra que apanhamos pelo caminho. O dia despontava a nascente e, porque a serra nos protegia da brisa marítima, agradavelmente a madrugada tornou-se menos fria, pelo menos até começar a descer para a Figueira da Foz. Desta vez não houve pétêtê pelas ranhuras da serra. Cruzamos a cidade e fomos ao mesmo hotel registar o cartãozinho. Mais uma vez tivemos de pedinchar a carimbadela, “era muito cedo”, mas a simpática recepcionista, mesmo ultrapassando directrizes superiores, lá nos fez o obséquio de timbrar a cartolina.
O sono passou, mas o cansaço estava estampado no corpo e nas nossas caras. Foi em modo de piloto automático que rodámos pela marginal, admirando a praia da Claridade e a foz do Mondego. Orientamos a bússola para nascente e enfrentamos o rude vento frontal que entretanto se levantou e a ondulada N111 até Montemor-o-Velho, para o registo da 22ª hora. Uma sandocha e um galão morno reanimaram-me os sentidos. As sensações eram excelentes para o momento. O dia estava fantástico, a manhã aquecia e, tiradas todas as fotografias, apontamos à N347.
Pelas bordas do Rio Mondego, o resto dos trezentos e setenta e tal quilómetros foram cumpridos pela já conhecida espécie de estrada, uma via lunar repleta de crateras, algumas entretanto tapadas com terra, o que não só veio demonstrar a boa resistência da Tripas como também o meu instinto de sobrevivência, do meu assento própiamente dito. Contemplando a paisagem e a natureza ao redor, entre arrozais, água e os sons da passarada, aqui e ali fomos cruzando com ciclistas de fim-de-semana. Bom também foi poder mudar um pouco o foco e deixar-me ficar para trás, comendo mosquitos. Até Coimbra a pedalada foi instintiva, a martelar os pedais quase que com o poder da mente e com a boca fechada.
Coimbra tem mais encanto na hora da Flèche concluída. Foi fantástico ver a nossa chegada ao ponto de encontro, em simultâneo com a chegada de muitos outros companheiros de estrada vindo de variadíssimos lugares, três equipas nacionais e as três equipas de randonneurs oriundos da vizinha Espanha, onde figuravam os amigos dos CC Riazor. Feliz por ter desgrudado a bola de basquete… o rabo do selim, desmontei e não cai no chão. Carimbado o brevet pela última vez, para honra e glória de futuras gerações, já só queria o convívio com a malta e a recompensa prometida, um prato cheio de tagliatelle com salmão.
A vida é feita de instantes e o passado é feito da partiha destes momentos marcantes. Este foi mais um passeio agradável e intenso, vinte e quatro horas de pedalada, espírito de equipe e fantástica convivência. Mais um devaneio a pedais que vai certamente figurar no painel de memórias dos anos mais activos da minha loooonga juventude.
Valeu, Miranda, Luis e Óscar, a valente equipa Flèche Minho, foi um enorme prazer pedalar de novo ao vosso lado. Forte abraço a todos.
Paulo.
Gostei muito!
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Muito bom Paulo. Grande aventura uma vez mais! Olha os 400`s a piscar um olho… 🙂
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Obrigado.
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Obrigado Nelson. O Alqueva400 é uma possibilidade mas ainda não é certo que participe. A ver vamos. Abraço.
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