Acordado e cheio de pica, abro a porta do elevador e cumprimento o sol que me encandeia pelo envidraçado da porta. Pode soar estranho dizer que me sentia motivado, sair bem cedinho para o trabalho, mas acrescentando ser véspera de feriado, por si só e por ser a meio da semana, cumprir a minha rotina diária no selim da bicicleta augura a melhor das motivações. Assim, antecipando a folga, pedalo cheio de confiança pelo habitual percurso, desfrutando o ar livre, calmamente e usufruindo do brilho solarengo da amena manhã…
Pummm… Crashhhh… fo….. ahhh seu filho de uma cadela!!!
A escassas dezenas de metros da instituição laboral, um jeco sai do meio de carros estacionados, atravessa-se à minha frente e não me deu tempo, nem mesmo de gritar. Quando dei por mim estava estatelado no alcatrão com a bicla em cima de mim, atarantado, tentando perceber o que me tinha acertado.
Paulo… ouvi chamar! Era um colega que seguia para o trabalho a pé, assistiu a tudo e assistiu-me.
Oh pá, foi um cão não foi!? perguntava-lhe enquanto ele me ajudava a levantar.
Foi pá. Estás bem?… O gajo ia atrás de outro cão… ou cadela, sei lá. Estás mesmo bem? Tu vê lá pá!
Ahhh… cão danado. Sacudi a capota, analisei o esqueleto, registei o acumulado de cicatrizes na Sua Alteza, snifff…, ajustei-lhe a direcção e fui a butes, só para confirmar se não ia a andar de lado comó Machado.
Quem é ciclista regular terá certamente peripécias vividas com os rafeiros. Posso dizer que já tenho algum traquejo neste desaguisado entre cães e ciclistas. Tenho algumas teorias para o motivo de tanta animosidade, o que não tenho é imunidade quando os pulguentos se atravessam à minha frente e me atropelam. Com este já é o segundo vadio que me deita ao chão. Um doloroso déjà vu! Outra vez um cão! Caso para dizer, é preciso ter galo!
A dolorosa experiência anterior já aqui a relatei, relembrando a minha infância e adolescência, passadas nos selins do meu crescimento velocipédico, às voltas pelo bairro:
“Durante vários anos, para a grande maioria dos rapazes da minha idade, o prazer de sair à rua a pedalar uma bicicleta resumia-se praticamente a dar a volta ao bairro ou arriscar aventuras pelos bosques. Era uma festa formidável. Um mini-pelotão de ciclistas sem prática reunia-se em frente a minha casa e pedalava horas a fio pelo empedrado, pelo cimento dos passeios, por terras de pó e lama. No dia seguinte estávamos de rastos mas era uma ressaca saborosa. Esse dia era o primeiro dia das férias grandes.
Pedalar naquela época, anos 70 e 80, era maravilhoso. Havia pouquíssimos carros nas ruas e os espantados automobilistas tinham um cuidado redobrado com aqueles loucos. E apelidar-me de louco é pouco. Eu era como as minhas bicicletas, rijo como o aço. A minha segunda bicla oferecida pelo meu pai era de corrida, uma Vilar vermelha, roda 24 de cinco velocidades. Nela eu simplesmente perdia a noção do perigo e a busca da adrenalina algumas vezes não encontrava limites. Alegria, felicidade, prazer em procurar caminhos novos, alguns deles tortos, e não raro o tombo que se dava no meio do trajecto. Fica um exemplo: Já passava da hora de jantar e a noite caía num crepúsculo de Setembro. Pedalávamos a todo o gás. Ultrapasso o Ernesto num contra-relógio irracional pela Rua Dr. Oliveira Lobo, a oposta à minha. Não tive a mínima hipótese. É que nem enxerguei o animal a saltar do passeio e surgir por entre os carros estacionados à esquerda. Quando dei por ele já a roda lhe acertava em cheio no estômago. Desamparado, caí sobre o meu braço e coxa direita. Do cão só lhe ouvi um estridente ganido de dor. Estatelado no chão em cima da bicicleta, surgiu ao pé de mim o esbaforido Ernesto com as seguintes palavras de encorajamento:
“Xiiii Paulo, até fez faísca!!!”.
Invariavelmente esse era o meu estado de corpo, aqui e ali tatuado de mercurocromo.” […]
Outra vez um cão! É mesmo preciso ter galo… e este vai cantar à meia noite.