
Desta vez não me esqueci de ligar o despertador e saí do Porto bem cedinho, ainda com a última saída solitária e atabalhoada de Esposende no pensamento. Penso ter sido o segundo a chegar a Marinhas, o habitual ponto de depart dos Brevets a norte, numa manhã gelada e cinzenta, mas com o mote musical dos Foo Fighters, em “minha honra” e a desejar-me “um dia frio ao sol”.

E assim foi, um belo dia ao sol, onde cerca de quarenta randonneurs, entre eles duas randonneuses ucranianas, Mari Pori e Bori Sova mais dois amigos Riazor oriundos da Galiza, juntaram forças e coloriram as estradas rumo à vila de Soajo, o ponto alto do dia. Mas antes de lá chegarmos tínhamos um longo caminho pela frente. Não sendo nada fácil, foi um percurso bastante agradável de ser feito e que me fez reviver algumas das memórias vividas nos vários brevets percorridos pelo verde Minho.

Um percurso com séculos de história, passagem de vidas peregrinas, ora movidas pela fé, ora entregues aos afazeres e tradições populares, através de estradas tranquilas, vistas esplêndidas e aldeias rústicas. As levadas (canais de irrigação) estão sempre presentes no caminho, no certo e longo Caminho, do pão e da fé. Eram usadas para o regadio dos campos de cultivo e para movimentar os moinhos que transformavam o grão na farinha, bem como orientar e refrescar peregrinos ao longo dos caminhos.

Depois de rondarmos o rio Neiva e mais à frente cruzarmos o rio Lima, que nos voltaria a assomar na vinda, iniciamos as primeiras subidas para chegarmos em bom ritmo ao primeiro local de controlo. Com a indicação para um pequeno desvio da estrada principal, paramos junto a um belíssimo solar datado de 1864, assim consta no portão o número que deveríamos indicar no cartão do Brevet. Retratada no seu romance homónimo, a Casa Grande de Romarigães, está intimamente ligada também à vida e família do escritor Aquilino Ribeiro.

Por essa altura a manhã estava perfeita, céu quase limpo, apenas algumas nuvens solitárias, sem vento e com a temperatura a aconselhar o alívio de alguma roupagem. Finalizadas as necessidades, viramos rumo a Paredes de Coura pela bucólica N301, subindo e imaginando as doçarias que iriamos escolher no segundo posto de controlo, uma pastelaria no concorrido centro histórico em dia de mercado. Pacientemente, o José Ferreira aguardava a nossa chegada e registou a nossa passagem no cartão com a primeira carimbadela. Sento-me à mesa e sou reconhecido pelo Andy, amigo das redes sociais e que pedalava pelo seu quintal de adopção.

E como sempre nos PC’s, uns chegam e outros continuam Lá vai o Andy (boa recuperação amigo). Depois de subirmos até quase aos 600 metros, descemos ao rio Vez para, outra vez, voltar a subir, isso tudo e muito mais. Algumas das estradas a percorrer não eram novidade para mim, mas subir o Soajo seria. A visita à já conhecida cidade de Arcos de Valdevez foi fugaz e, como tal, embalamos.

A crescente inclinação da estrada seria uma ninharia para os prazeres que retiramos desta coisa do cicloturismo. Eu, claro, estava a suar mas também a estava a saborear. A manhã foi, entretanto, mudando de humores, ficando cada vez mais escura, mais ventosa, arrefecendo abruptamente.

No topo, a recompensa foram as vistas, incluindo o vislumbre da alva neve lá no topo da Serra do Gerês e que o Pawel fez questão de subir ali para a fotografar.

No coração do Parque Nacional da Peneda-Gerês, a Serra do Soajo é uma das suas atracções mais vibrantes e procuradas. Conhecida pelos seus fotogénicos espigueiros e pela exuberância da natureza envolvente, a aldeia do Soajo tornou-se uma terra muito procurada e visitada. Uma terra que o turismo pôs no mapa, e que a comunidade que nela reside a tem sabido preservar, o seu passado, a sua cultura e a sua autenticidade.

Com o entusiasmo de um prato de sopa que imaginava à minha espera, invadimos a aldeia pelo Largo do Eiró, procurando vestígios da história, arquitectura e o evidente orgulho que os seus conterrâneos têm na sua terra.

Um dos exemplos é o cão sabujo da serra do Soajo: “sabujo” porque é de caça grossa, e serra do Soajo porque não é um cão qualquer. Diz que é “a matriz de muitos cães portugueses”. Esta raça tem a particularidade de ser o cão que no tempo da monarquia, todos os anos os soajeiros enviavam aos reis de Portugal e que, por tal oferta, beneficiaram da isenção de impostos e outros privilégios.

Antes de ir provar a sopa e iguarias d’as Marias, subi lá em cima à Eira do Penedo e fui ver o ex-líbris da povoação. Há quem lhes chame espigueiros, há quem lhes chame caniços, os mais conhecidos estão concentrados numa eira comunitária, assentes num afloramento granítico onde 24 destas altivas construções sobressaem pelo conjunto e pela beleza.

Os espigueiros eram utilizados para guardar o milho, deixando-o bem arejado e protegido de pragas. Consta que o espigueiro mais antigo data de 1782, não identifiquei qual, estando classificado como Imóvel de Interesse Público desde 1983.

Reunimos o grupeto, com o Alain, o Pawel, o Nelson mais o Jorge e voltamos à estrada, que ia descendo abruptamente para o Lima. A natureza à volta convidava a seguir cada vez mais lento, apertando os travões e apreciando as extensões de terreno onde o cultivo do milho, a criação do gado nas brandas pastorícias são predominantes. Ao longo da estrada íamos vislumbrando as vacas cachenas, ovelhas, e ainda tivemos o encontro feliz com alguns cavalos selvagens do Soajo, o cavalo garrano.

Atravessada a ponte, junto à antiga central hidroeléctrica do Lindoso e ultrapassadas aquelas dezenas de metros de um paralelo manhoso e escorregadio, seguimos tranquilamente ao lado do rio com a cara ao vento, até Ponte da Barca.

Ah, mas havia ainda uma subida pela frente. Revisitamos a ascenção da N101 para a Portela do Vade, onde no ano passado me lembro de nos arrastarmos por ali no decurso do BRM300. Graças à conversa, desta feita a escalada passou depressa, até voltarmos a descer, a voar e a arrefecer.

Foi já sob uns grossos e gelados pingos de chuva que chegámos juntos ao último controlo em Vila Verde. O Zé Ferreira aguardava-nos na esplanada de uma cervejaria onde, para além de boa cerveja artesanal, sobressaiam saborosas sobremesas. Já não tive direito à doce regalia, mas fui salvo pela meia sandes de presunto que trazia no bolso desde o Soajo, hidratada por uma “bejeca” preta, que também fez milagres.

Para os derradeiros quarenta quilómetros os motores estavam já em modo “ralenti”. A cadência ia sendo doseada, as forças partilhadas, enfrentando um vento cada vez mais agreste que soprava frontal. Ultrapassada a malha urbana de Barcelos onde tivemos de lidar com o um tráfego enervante, não demorou meia hora para em Esposende avistarmos o oceano e reencontrarmos a N13, que seguimos até chegarmos em absoluta camaradagem ao ponto de chegada que também foi o de saída, em Marinhas.

E pronto, mais um evento soberbo por velhas estradas e serras minhotas. Magnífico roteiro desenhado e bem organizado por José Ferreira e Manuel Miranda, que também estiveram pessoalmente nos postos de controlo e onde tão bem nos receberam. Um muito obrigado à voluntariosa dedicação destes nossos amigos, que abdicaram da sua participação no Brevet, e que mais uma vez nos proporcionaram um excelente dia de pedalada.
– E o acumulado? – “Não há espiga”.



![fotocycle [278] Pai Natal e o Avô já pedalam pela cidade](https://i0.wp.com/dgtzuqphqg23d.cloudfront.net/H0p3Qixkh6ytZQv4wRWnbw6iA2MHlcZzCllVPb3MSq8-2048x1536.jpg?resize=200%2C200&ssl=1)
















Espetaculo! Sempre com fotografias top e uma narrativa que me transporta por essas estradas fantásticas…
Parabéns, Paulo e até Breve(t).
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Obrigado Nelson. Este foi realmente um dos mais interessantes e cénicos Brevets que participei.
Volta sempre
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