
As estradas de Portugal, sobretudo as antigas estradas nacionais, são um testemunho da geografia do nosso país, revelando recantos magníficos do interior de Portugal, bem como a história do povoamento e despovoamento do território nacional. Criadas pelo Plano Rodoviário Nacional em 1945 como eixos de desenvolvimento económico, muitas das estradas sofreram alterações nos seus traçados, foram sobrepostas por outras vias modernizadas ou simplesmente desapareceram dos mapas. Hierarquizadas em três classes, da importância das cidades e vilas que ligavam, estas vias asseguravam as acessibilidades rodoviárias de quase todo o país. As velhinhas EN’s e EM´s são as estradas onde nos é permitido pedalar e, como tal, são aquelas que na qualidade de ciclistas mais preservamos.

Das mais belas estradas de Portugal, não só pela sua magnífica panorâmica ao longo do rio, omnipresente em grande parte do percurso, do vale do Douro mas também pelos povoados que atravessa, curvas e declives, a N222 é uma das mais míticas e desejadas estradas a percorrer pelos ciclistas. Ligando Vila Nova de Gaia a Almendra, no concelho de Vila Nova de Foz Côa, quase que atravessa Portugal de lado-a-lado, (de Oeste para Este e vice-versa) Sendo uma das estradas mais longas do nosso país, nos seus reais 226 km de extensão, é sem dúvida alguma uma das mais interessantes estradas a pedalar na sua totalidade com maravilhosas vistas panorâmicas do Douro e Alto Douro Vinhateiro.

Uma imagem típica deste roteiro, muitas vezes observado à passagem por aldeias plantadas nas margens do Douro, bem como em muitas localidades do Portugal profundo, o saquinho de pão fresco deixado pelo padeiro à porta de casa, pendurado numa árvore ou num poste junto à estrada, é absolutamente icónico.

A velha estrada preserva muito do traçado original, tendo o ciclista que pretende seguir o seu serpenteado e primitivo pavimento o cuidado de não se deixar enganar pelas indicações dirigidas aos automobilistas, sobretudo aos mais apressados que “atalham caminho” pelas Variantes à EN222. O primeiro desses “desvios” é logo ao km 7. A estrada segue pela esquerda por Seixo Alvo até Sandim, onde retoma o traçado original. Mais à frente, ao km 31 nova Variante à EN222 surge no caminho. O antigo traçado passa à porta das antigas Minas do Pejão e ao atravessar Pedorido é partilhada com a Variante, sendo natural que por instantes o ciclista possa ficar baralhado e indeciso ao percorrer asfalto renovado e bem mais largo. Mais à frente, ao km 39 em Oliveira do Arda, desviando à esquerda para Raiva vai ficar descansado ao retomar toda a calma e cenário da velha estrada até Castelo de Paiva.
Ao km 73, em Santiago de Piães, subitamente o asfalto desaparece, revelando um enorme buraco que aguarda reparação. Com as recentes chuvas de Fevereiro e Março, este pedaço de estrada desmoronou em resultado da força da água de um ribeiro encanado sob o pavimento. Os sinais de perigo foram identificados, a estrada foi encerrada a tempo, para poucas horas depois suceder o há muito temido pela população residente, evitando-se assim uma possível trajédia. O transito automóvel está interrompido por um prazo não determinado, mas aqui o ciclista com um pouco de destreza consegue ultrapassar os obstáculos, aproveitando depois para uma bucha e uma bebida fresca no Café Santiago.

Após fugaz passagem por Cinfães, surge a saborosa descida até Porto Antigo. O asfalto desta parte da estrada já teve melhores dias, obrigando o ciclista a cuidados redobrados. Se quiser admirar todo o espectáculo cénico que o Douro nos apresenta, aqui é um bom pretexto para apertar os travões. Por alguns minutos nos determos no Miradouro da Foz do Bestança. Até apetece ficar por ali.

Para além de uma ou outra paragem para mais uma fotografia de ocasião, a necessidade de encher o bidão numa das fontes onde brota água fresca ou um buraco na estrada que o Couto não conseguiu evitar, furando assim a roda dianteira, concedeu-nos uns minutinhosos de descanso às pernas. A ansiada paragem para o almoço estava programada para Resende no habitual restaurante da Fonte Luminosa, mas a presença de um faminto grupo de jovens tenistas de mesa fez com que a atarefada empregada de mesa demorasse imenso tempo a servir-nos, o respasto e a sobremesa! A fotografia de cabeçalho deste postal foi tirada em frente à CM de Resende onde fizemos a nossa pequena revolução dos cravos.

De Porto Antigo até avistar o Peso da Régua, depois de conquistarmos várias subidas, a N222 tanto nos oferece um priveligiado miradouro lá dos altos para subitamente nos fazer descer e mergulhar para as margens do Douro, onde quase que dá vontade de largar os pedais e por os pés de molho, a refrescar. Resumidamente, é um sobe e desce constante num saboroso rompe pernas e que arregala as vistas.

Nesta fase da viajem, algum desgaste físico se apodera dos convivas e as paragens para as diabruras multiplicam-se. O relógio não pára e quero ignorá-lo, mas não dá para aligeirar. Tenho de dar corda aos pedais, seguir o objectivo, proseguir com os companheiros e o vento a ajudar. Já não há Rabelos a navegar de vela enfonada mas sempre temos a concorrência dos barcos repletos de turistas para desafiar.

Nos cerca de 20 quilómetros de troço plano, que liga as pontes do Peso da Régua quase até ao Pinhão, onde o rio e a estrada se fundem num exuberante panorama dos socalcos, dos vinhedos e da linha ferroviária com o espelho de água, a N222 foi eleita como a estrada mais bonita do mundo para conduzir. Pois para mim é realmente fascinante se for a pedalar a minha bicicleta, ou então, no mínimo, a conduzir um carro clássico de capota aberta.

Na boa companhia dos meus amigos Manuel Couto e Pawel Pesz desde o km 0, em Vila Nova de Gaia, chegamos ao km 158,5, ao Miradouro de Ventozelo, para as despedidas dos meus companheitos de route e das vistas do Rio Douro. Depois, enquanto os meus amigos desciam para a estação do Pinhão e voltavam para casa de comboio, prossegui sozinho, ao sabor do vento e dos sons da Natureza, em mais um commute para uns dias de férias na aldeia, com cénicas pedaladas programadas pelo Alto Douro e Trás-os-Montes.


Nunca antes havia concluído na integra o percurso da mítica N222. Com o desvio prévio para outras paragens, ainda me faltavam somar os últimos 29 quilómetros até às portas de Almendra. Oficialmente a estrada termina ao quilómetro 222,9, mas na realidade são 226, se lhe somarmos os 3 quilómetros que partilha com a N102 à entrada em V.N. Foz Côa. Depois da descida rápida até curzar o Rio Côa, a estrada parece outra, não só pelo asfalto renovado e pela largeza que entretanto ganhou, mas sobretudo pela longa e massacrante subida que se nos apresenta até Castelo Melhor.

Perante a visão das placas quilométricas que lentamente me iam surgindo, mentalmente ia fazendo a contagem descrescente dos quilómetros que faltavam. Maravilhado com o deslumbrante ocaso que podia observar por detrás das montanhas, ia rebobinando os bons momentos vividos neste Dia da Liberdade, nesta longa jornada de pedalada e do fantástico convivio que desfrutei. Ora, estando garantido o meu resgate após a conclusão da viagem, (mais uma vez obrigado Carla) fiquei supreendido que a Carla (sorridente, como sempre) me aguardasse junto à placa com mais números 2 que conheço na berma de alguma estrada. “Anda daí que ainda me faltam novecentos metros”, disse- lhe e continuei a lamber o prato naqueles saborosos novecentos metros que alguma vez pedalei.

Cheguei… e nem mais um metro!
Em união perfeita com a velhinha gOrka, a bicla que me atura nestes pedaladas mais esticadas, posamos junto à enorme placa de xisto cravejada de autocolantes ali plantada pelo Moto Clube do Côa, celebrando o términus oficial da Estrada Nacional 222, “que une Portugal de lado-a-lado”. Dali em diante foi tempo de disfrutar alguns dias de férias na aldeia, relaxar as pernas mas sem lhes dar muito descanso, pois os Passadiços do Côa estavam mais uma vez no menú e outras pedaladas estavam programadas por “desertas e fascinantes” estradas nacionais… e municipais.

Piadas à parte… “Oh Couto, a senhora do Tasco não desarmou, pá!”, espero que seja para breve.