Segunda-feira, último dia de Maio. Pedalava estrada afora manhã bem cedo, sabendo antes mesmo da primeira pedalada que seria uma viagem longa e agradável. Por um lado, o dia estava simplesmente lindo, brilhante e fresco, com uma leve brisa pelas costas. Por outro lado, eu não estava no meu commute matinal para o trabalho. Estava a dar início a uma semaninha longe de tudo. Poder desfrutar uns dias de férias, ficar sem rede, reajustar a cabeça e passear com a patroa.
Gosto de pedalar por estradas velhas e isoladas ao longo do rio, de qualquer rio. Adoro pedalar, ponto. Vaguear calmamente, relembrando histórias, ouvindo e revendo o que vivi inúmeras vezes. Não importam os destinos ou as distâncias, faço-me à estrada para sentir a inspiração de uma nova viagem.
Assim, em mais uma jornada de pedal demorado e suado para a minha aldeia mais longínqua, parando na outra minha aldeia que fica precisamente a meio caminho para encher a barriga de sustento e sorrisos, a bicicleta é, e foi, a opção lógica em troca de duas aborrecidas horas de carro, depois da patroa encerrar o expediente.
Ok, actualmente temos as autoestradas que poupam tempo e nos roubam dinheiro, mas por aí o tempo passa demasiado depressa. Relembrando velhos tempos de infância, como relembra a minha amiga Cristina Quartas, outrora a viagem de carro era uma saborosa aventura. Partilho e retiro alguns excertos do seu belo texto: “a viagem era longa – 8 horas. Oito horas de caminho até à aldeia das Mós. Oito horas a caminho de Sta. Bárbara.”
“As estradas eram em paralelo. Estreitas e cheias de curvas. Íamos por Mesão Frio, Régua, Horta, Sebadelhe, Touça… em direcção a Vila Nova de Foz Côa.
Parávamos várias vezes pelo caminho para arrefecer o carro, fazer “chichi”, merendar e descansar um pouco de estar sentados.
Pelo caminho, acima da Régua, encontrávamos recantos maravilhosos para merendar.”
As estradas são as mesmas, as lonjuras são as mesmas, as curvas são as mesmas, os pisos e os automóveis é que são outros.
Estava de volta à velha N108, para lá de Entre-os-Rios, para lá do marco dos quarenta quilómetros, atravessando rios que desaguam no Douro, deitando-me nas curvas ao longo dos vales, lembrando sons e cheiros que me fazem viajar através do tempo e do espaço para aterrar nos mesmos lugares de há quarenta anos.
Logo percebi que estava inebriado, naquele estado cognitivo onde a minha bicicleta parece simplesmente desaparecer debaixo de mim, até que um forte estrondo e a súbita chuvada me acorda para a realidade. Bem me havia avisado o Tio Pinto, que com aquele calor e o céu carregado prometia vir a apanhar trovoada e chuva da grossa algures pelo caminho.
“De repente, ouvia-se o assobio afunilado e prolongado dum comboio, movido a carvão e o barulho da sua engrenagem nas linhas que contornavam as serras no outro lado da margem do Douro, ao longo do seu leito: um comboio a caminho de Barca de Alva!”
Cruzada a ponte, estava de volta à mítica N222, para lá da Régua, a todo o vapor, a par com o comboio que me desafiava da outra banda. Estava para lá do Pinhão, dizendo um “até já” ao pachorrento Douro. Para lá dos montes ia negociando com o calor, sentindo o coração que acelerava nas subidas e as pernas que relaxavam nas descidas.
Do vento eu não me deveria ter preocupado, estava forte, sim, mas ia-me empurrando para aquelas belas e perpétuas paisagens do Douro Vinhateiro. É claro que havia ainda muita subida dura e implacável, mas eu tinha tempo. O que me preocupava era aquele horizonte negro sobre o Marão, aqueles verticais riscos cinzentos desenhados pela chuva e evidentes clarões de relâmpagos, bem lá no alto. Estava certo que o mau tempo não me ia apanhar, pois não estava no meu caminho. Pelo telefone chegou a confirmação da forte tempestade que assolava Vila Real. Chuva forte, acompanhada de granizo e rajadas de vento, apavorava quem conduzia pela A4. No final da minha chamada telefónica para a Carla, seguiu também o meu conselho para que conduzisse com cuidados redobrados.
O meu passeio prosseguiu sem complicações e correu bem. Registei as paragens com uma série de fotografias e percebi que estava algo adiantado para as minhas previsões, com uma velocidade média muito respeitável de vinte e cinco quilômetros por hora. Mas a ideia era não ter pressas. Afinal, a chave de casa não estava comigo. A minha pedalada começou a se normalizar, o corpo a reclamar, e numa cadência mais tranquila, os meus pensamentos ficaram mais focados nos dias seguintes.
A minha mente estava repleta de ideias, de listas de “o que fazer” e “para onde ir”, onde muitas delas incluíam longos passeios de bicicleta, mas, às vezes, aquilo que a cabeça quer o corpo não obedece.
“Mas o destino não era aquele. Por isso, havia que seguir caminho.
As lindas paisagens “planaltas” começavam a ficar para trás. Aquela estrada velha e estreita era a que ia para a estação do caminho-de-ferro de Freixo de Numão.
Os barrancos eram agora mais sombrios, mais estreitos. Passávamos a pequena aldeia de Murça e pouco mais adiante uma seta à direita “MÓS”.”
Mas aí a(o) Preguiça falou mais alto. Ao longo da restante semana fiquei de papo para o ar e a bicicleta ficou parada, encostada à sua amiga Dona Etielbina, velha bicicleta que me espera quando me mudar da cidade para o campo. “Então e a bicicleta?”, insistiam em me perguntar. A bicicleta meteu férias, porque eu assim o quis. Também merece carago!
No final de contas, a viagem pedalada entre o Porto e a aldeia dos meus avós, (podem ver aqui mais um registo “strávico”, gravado para a posterioridade e futuras gerações) demorou apenas mais trinta minutos do que as oito horas vividas pela Cristina no Volkswagen do seu pai. Já nós, eu o Tó, a minha mãe e o meu pai, para lá chegar repartíamos a viagem do nosso Fiat 127 em duas etapas: Porto – Frende (Castelo) / Castelo (aldeia da minha mãe) – Mós (aldeia do meu pai). As vantagens de agora são muitas e óbvias. Agora eu não enjoo.
É sempre bom ler as tuas palavras/pensamentos ver as tuas fotos de qualidade excelente e quase conseguir por momentos sentir o vento na cara rasgada por um sorriso de quem aí a pedal. Obrigado.
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Partilho do mesmo espírito e atitude.
E da abordagem traduzida nas palavras e ilustrações.
Excelente relato!
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Obrigado Rui pelos calorosos elogios.
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Obrigado eu Rui por tão calorosos elogios. Já sabes amigo, deixo sempre um rasto daquilo que vivi em palavras e em imagens para quem não pode fazer-me companhia possa sentir aquilo que vivi.
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Mais um relato de qualidade… ao nível da beleza da paisagem. Já percorri parte deste percurso, de carro, uma pequena parte de bicla e como dizia o outro: em ambos os dois não é fácil!!! Gabo-te a ousadia e a coragem de ires vencendo estes adamastores para depois presentear-nos com estas estórias com histórias à mistura, adornadas com belos retratos.
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Obrigado Nelson. É de facto como dizes, a beleza da paisagem, a expectativa de voltar a subir o Douro, ou em ambos os dois 🙂 , superam qualquer dificuldade, qualquer acumulado montanhoso.
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