depois da descoberta, a gastronomia do Maria Rita


Se a longa jornada anterior tinha sido dedicada à descoberta do lugar onde iríamos pernoitar, o dia seguinte seria todo ele para desvendar a aldeia do Romeu e os seus encantos. O sol despertou, a preguiça e a estafa não me prenderam à cama. Fui espreitar pela varanda e… Que manhã incrível! Nem uma nuvem à vista, apenas uma brisa amena e a promessa de um dia fantástico.

Domingo, dia da Mãe… um sorriso e uma lágrima marota de saudade se soltou. Depois de algumas arrumações na bicicleta, a manhã foi reservada para outro tipo de andanças. E por falar em “reservada”, já nos haviam avisado de véspera que a gastronomia no Maria Rita poderia estar comprometida. As mesas do restaurante estavam todas reservadas! – Oh… diacho! Depois do pequeno-almoço saí munido do telelé para fotografar e descobrir a aldeia das rosas. Romeu é um belo povoado de casas graníticas com muitos ex-líbris: a capela, os fontanários, a loja, o Museu das Curiosidades… E eu cheio de curiosidade! A aldeia é pequena, no entanto está repleta de história e histórias. O restaurante Maria Rita, ainda fechado e sem os aromas das panelas, já me abria o apetite.

Não havia dúvidas que a casa secular convidava a entrar e sentar-se à mesa. Antes mesmo de contar qual foi o “prato do dia”, deixo alguns apontamentos sobre a sua origem: Em 1874, após uma viagem de quatro dias até aos montes e planaltos do nordeste transmontano, Clemente Menéres chega a Romeu para comprar sobreirais que, ouviu dizer, por lá havia. Na sua biografia “Clemente Menéres 40 Anos de Trás os Montes, 1915”, escreveu o seguinte:

“Cheguei à povoação do Romeu às 4 horas da tarde do dia 18 de Maio de 1874. Procurei uma estalagem e encontrei a única que lá existia e que era da Sr.ª Maria Rita que, por signal, nada tinha que nos dar de comer. Mandei então assar bacalhau, acompanhado, a primeira vez para mim, de pão negro de centeio…”

Ex-emigrante no Brasil, negociante e empreendedor viajado pelo mundo inteiro, chegou do Porto à procura de negócios e ficou rendido à beleza natural e potencialidades da região. Em Jerusalém do Romeu fixou residência e fundou a Casa Menéres. Criou uma vasta propriedade, a Quinta do Romeu, dispersa por oito concelhos do distrito de Bragança e “de pedras fez terra”. Notabilizou a região com a exploração do sobreiro, refez vinhas que encontrou dizimadas pela filoxera e alargou os olivais que existiam para a produção do azeite. Mobilizou esforços para a construção da linha férrea do Tua. Manteve vários negócios na região do Porto e durante alguns anos dirigiu a Associação Comercial do Porto. Fez também parte dos corpos gerentes de várias instituições de beneficência da Cidade Invicta, onde veio a falecer em 1916. A Câmara Municipal do Porto deu o seu nome à rua que ladeia o Jardim do Carregal, junto ao Hospital de Santo António. Os seus descendentes deram continuidade à Sociedade Clemente Menéres até aos dias de hoje.

Andava eu por ali a meter o nariz em tudo, quando o Couto nos apresenta as binas que nos iriam transportar num tour cicloturístico pela vizinha mata e montes do Quadraçal. Qual coleccionador de biclas, o nosso amigo guarda na sua garagem vários exemplares de duas rodas, clássicas do todo-o-terreno, umas melhorzinhas do que outras, autênticos monos com as mínimas condições para rolar. No bike sharing calhou-me em sorte um exemplar da casa Cosmos, com corninhos no guiador e mudanças engrenadas a murro. Guiados pelo nosso cicerone, partimos numa pedalada pela história.

Mal saímos do paralelo e fiquei logo para trás. Quer dizer, as pernas ainda estavam perras, prontes, e não era lá pela corrente estar sempre a saltar que eu esfarraparia desculpas! O trilho empinado depressa fez aumentar a temperatura e obrigou o Jacinto a tirar o casaco. Os caminhos por entre os sobreirais levaram-nos primeiro a um casario onde em tempos idos pernoitavam os obreiros da cortiça. Vendo as ruínas das instalações, da cozinha e camaratas, deu para imaginar as condições de vida dos corticeiros e a quantidade de pessoal necessário à dura tarefa de extrair a cortiça. Os terrenos rochosos onde proliferam os sobreiros, entre fragas de difícil acesso, acresciam as dificuldades na recolha e transporte da cortiça, que depois tratada seguia quase na totalidade para exportação.

A certa altura o Couto mandou-nos desmontar das binas e seguimos a calcantes por entre o matagal. Cravado num penedo, mostrou-nos uma placa evocativa da função comercial da família Menéres. Mais à frente deixamos as binas encostadas à sombra para empreendermos a escalada de um afloramento rochoso até ao topo. Com meia dezena de metros de altura, emerge um monumento de memória mandado erigir pelos descendentes após a morte do fundador da Sociedade.

Dali a panorâmica é vasta e as vistas são deslumbrantes. Nos sentimos inspirados pela natureza e não paramos de tirar fotos. Entretanto algo me chamou a atenção. Algumas cavidades no granito das enormes rochas, que a princípio julgava serem resultantes da construção do monumento, são vestígios de que há muitos e muitos milhares de anos ali houve mar!

Voltamos aos selins e descemos até às margens da ribeira do Quadraçal, um local bem fresquinho onde pudemos visitar um pequeno açude formado pela barragem da Estrangeira e o dique da Fábrica Velha, local onde outrora se procedia à transformação da cortiça, nomeadamente ao fabrico de rolhas. Depois de passar pelos poucos vestígios da linha do Tua, que ali passava fazendo a ligação entre Mirandela e Macedo de Cavaleiros, foi já com as barrigas a dar horas que voltamos ao preâmbulo da nossa digressão. À medida que galgávamos os trilhos, as nossas bicicletas começaram a dar sinal de si e as avarias não demoraram. Enquanto eu me debatia em voltar a colocar a corrente nos carretos, o Rui desistiu de tanto martelar o eixo da roda traseira e desatou a fazer um corta-mato com a princesa a seu lado! Já só pensávamos na comidinha do Maria Rita, mas iríamos ter uma surpresa antes da sobremesa.

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Estacionada a demoníaca bina Cosmos, fui ao Maria Rita na companhia do Campelo, directos à cozinha, cheirar os tachos e negociar os trâmites gastronómicos. Depois de bem recebidos pelas simpáticas meninas e cozinheiras, garantido o take-away, três doses do típico Bacalhau à Romeu foi o menu escolhido. Na maioria dos lugares, é reconfortante saber que, onde quer que estejas no mundo, sempre encontrarás pessoas afáveis e prestativas. Posta a mesa e trazido o vinho da garrafeira, não me importei nada em ter trocado o almoço na sumptuosa sala do Maria Rita pela fresca sombra da varanda do Couto. Aquele bacalhau é divinal, recomendo. Ainda voltei ao restaurante para tomar um café e apreciar mais detalhadamente a sua história e decoração. A velha estalagem ficou abandonada após a morte da Sr.ª Maria Rita e permaneceu em ruínas até que já na década de 60, Manuel Menéres, o segundo na sucessão, restaurou a velha estalagem, trouxe o recheio de uma das suas quintas e recriou o restaurante Maria Rita com a cozinheira de sua casa e as receitas de família.

Enquanto fazíamos a digestão do saboroso repasto, e o Jacinto, deitado no chão, tirava uma soneca endireitava as costas, ainda nos faltava a prometida sobremesa. Ora, e o que vinha mesmo a calhar para disfarçar o calor que já fazia? Isso mesmo, umas pedaladas e um gelado! O Couto e o Rui já tinham decidido que iríamos dar ao pedal até Macedo de Cavaleiros. A tarde estava quente e convidava-me a ficar para a sesta fazendo companhia ao Jacinto que já passava pelas brasas, só que o apelo da estrada foi mais forte. O Campelo também resolveu ir e eu não resisti à tentação do gelado. Lá fomos, sem que antes a curiosidade nos aguçasse de novo o espírito de descoberta e adiamos a pedalada por mais uma horita num interlúdio cultural.

O Museu das Curiosidades é um espaço museológico fundado por Manuel Menéres, cuja vocação é a divulgação da história, do vasto espólio familiar e da Casa Menéres. Uma interessante colecção de objectos curiosos dos finais do Séc. XIX e princípios do Séc. XX, ora utilizados no dia a dia, relacionados com as aldeias de Romeu, Vale de Couce e Vila Verdinho, ora relacionados com os interesses lúdicos, da influência política, empresarial e obra social da família. Lá pudemos observar diversos documentos e fotografias ligadas à história da terra, vários automóveis e um primitivo carro dos bombeiros. Foi nos dado a ouvir o cristalino som de uma das encantadoras caixas de música. Pudemos admirar um raro e original fonógrafo, patenteado por Thomas Edison, as primeiras máquinas fotográficas, de projecção de cinema, de costura, de engomar, telefonias, as novas tecnologias de comunicação da época, carros de cavalos, bicicletas…

… destacando-se a Penny Frathing amarela, que tive a permissão de fotografar, chamou-nos desde logo a atenção. Bastante curiosa é também a carta do Real Velo-Club do Porto datada de 1898, assim como a humorística litografia bem a propósito da época.

Voltando aos planos para a tarde, fomos finalmente pedalar ao longo das estradas da terra quente transmontana. Se a ideia inicial seria saborear um gelado em Macedo e depois voltar, a demorada visita ao museu, justificada pelo seu significado cultural e histórico, depois a vagarosa pedalada e o calor relógio, não se haviam completado meia dúzia de quilómetros e decidimos parar na aldeia vizinha de Cortiços, onde há também um museu, este dedicado ao azeite, mas desta vez não fomos lá enriquecer a nossa cultura geral. Antes que nos desse os azeites, ficamos sentados à sombra a degustar o tão apetecido gelado e a dar duas de letra com o senhor do café. Recebido o telefonema do Jacinto, que nos tirou da indolência, voltamos a calcar o pedal de regresso à casa, onde já estava a Sónia com o veículo que nos haveria de devolver à procedência. Preparada a carroça e encaixadas as biclas no reboque, um par de horas depois estava a chegar a casa, super satisfeito com o passeio.

Foi um inesquecível fim de semana, uma jornada de descoberta e também de redescoberta, por rotas que conheço muito bem e por novos e tortuosos atalhos. Por dois dias convivemos e partilhamos bons momentos. Observei muita coisa, experimentei e vivenciei imenso.

Um agradecimento especial ao nosso cicerone, obrigado pelo convite Couto, é sempre um prazer pedalar ao teu lado. Outro à simpática e amável Sónia Couto que nos foi buscar para depois nos ter de aturar as cavaqueiras de ciclistas. Um obrigado aos meus amigos Rui, Jacinto, Campelo, Kiko e Wolf pelo esforço e convívio. Venha a próxima aventura.


Sobre a viagem, a descoberta não se trata de chegar lá, é sobre estar lá.

Sobre paulofski

Na bicicleta. Aquilo que hoje é a minha realidade e um benefício extraordinário, eu só aprendi aos 6 anos, para deixar aos 18 e voltar a ela para me aventurar aos 40. Aos poucos fui conquistando a afeição das amigas do ambiente e o resto, bem, o resto é paisagem e absorver todo o prazer que as minhas bicicletas me têm proporcionado.
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7 respostas a depois da descoberta, a gastronomia do Maria Rita

  1. Nelson Branco diz:

    Que maravilha de aventura!
    Pacote completo… pedalada, almoço do bom, atividade cultural, amigos. Espectáculo.
    Parabéns, uma vez mais.

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  2. paulofski diz:

    São passeios assim que o povo gosta, o cicloturismo na verdadeira acepção da palavra.

    Obrigado, uma vez mais 🙂

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  3. Excelente foto-reportagem!

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  4. Manuel Couto diz:

    Parabéns e inesquecível. Grande cronista Abraço

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  5. Pingback: à Descoberta do Romeu… | na bicicleta

apenas pedalar ao nosso ritmo.