ribatejando, a crónica L’Antique 200 versão 2017

lantique-383 horas. 3 graus! Enfiado debaixo de camadas de algodão e licra, a custo lá me ia mantendo quente. Aguardei que o Jacinto me recolhesse à porta de casa para abalarmos ao encontro do Manuel Couto e do Paulo Campelo, em Avintes, V.N. Gaia. Uma hora depois, com as quatro biclas acomodadas no tejadilho da viatura, seguíamos pela madrugada afora rumo ao sul. Esta seria a minha terceira aventura no suave L’Antique 200, brevet que anualmente marca o arranque da temporada dos Randonneur tugas.

À chegada a Vila Franca de Xira, não muito surpreendentemente, deparei-me dentro de uma arca frigorífica! O meu nariz foi o primeiro a dar o aviso. Após os derradeiros preparos na minha bicicleta para todo o serviço, Dona Tripas InBicla, vesti toda a roupa quente que levava:  duas camisolas e dois pares calças térmicas, o jersey de inverno, uma camada superior extra com uma jaqueta leve windstopper e o indispensável colete laranja. Dois pares de meias, cobre sapatos, gorro na cabeça e um par de luvas térmicas. Vendo-me assim ao espelho era uma aproximação similar a uma paiola tradicional… uma espécie de chouriça! Enquanto isso, ia observando o termómetro com expectativa. Zero graus!!! Xiça…

Um maravilhoso sol despontava e ampliava o desejo de começar a pedalada. Na rápida descida ao encontro da N1 as minhas bochechas até batiam palmas. O pelotão esticou-se e adoptei desde logo um ritmo rápido para ir aquecendo o corpinho. O exercício é um ritual importante para mim. Depois de alguns minutos a pedalar, as endorfinas começam a surgir e eu me sinto revitalizado. Percebi entretanto que havia esquecido de encher a garrafa de água, mas acho que nem valeria a pena pois não iria precisar de gelo. Alguns minutos depois já se rolava pelas estradas agrícolas da lezíria. É muito lisonjeiro chamar aquilo de estradas, estão bastante desleixadas, esburacadas, autênticas crateras lunares.

Primeiro posto de controlo, primeira paragem para um bike quiz. À medida que passávamos pelos campos via-se a vegetação rasteira que rodeava a estrada ainda revestida de alva geada. As sombras do início da manhã cobriam a superfície do asfalto com todas as formas. Recordava alguns locais que retive dos anteriores brevets. Ainda assim, há uma beleza renovada para ser redescoberta nas ondas e padrões congelados no tempo. Meus pensamentos vagueavam e eu começo finalmente a sentir-me mais fogoso. Paro para libertar algum carrego do corpo. Tiro as luvas e guardo-as nos bolsos. Chegados a Porto de Muge para novo controlo, a luva esquerda é me devolvida depois de resgatada do asfalto por um colega retardatário, a quem agradeci fervorosamente. Esta minha mania de ir perdendo lastro pelo caminho!…

Ao longo do passeio, em alguns momentos ia-se descortinando o Tejo. A estrada em torno do rio é moderadamente suave, com excelentes vistas, caminhos simplesmente fantásticos, onde o mau estado do piso só torna o passeio mais interessante. Gosto de pedalar por estradas velhas e isoladas ao longo do rio, de qualquer rio. Adoro pedalar, ponto. Vaguear calmamente trocando histórias com velhos amigos, ouvir e aprender o que ouvi inúmeras vezes. Não importam os destinos ou as distâncias, sentir a inspiração de uma nova viagem com novos companheiros de viagem.

Desvio ao encontro de outro local para resposta de novo questionário, ponte do Cação sobre o rio Alviela. Desacordo ortográfico em terras de Saramago ou como a falta de um acento faz toda a diferença! As experiências, a cultura, a história dos lugares, tudo isso faz com que a pedalada seja memorável.

Voltar à planície ribatejana com a bicicleta com que aprendeu a pedalar, na bem estimada pasteleira de 40 anos que foi do pai, e nela pedalar por terras onde outrora aprendeu a gostar de pedalar. Este foi o desafio a que se propôs o Super Randonnée José Ferreira. Parabéns Zé, mais um desafio superado.

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Memorável para mim foi, mais à frente, voltar a bater pala à porta-de-armas do desactivado aquartelamento BTm3 Casal do Pote,  Escola Prática de Engenharia, em Tancos. Cumprem-se trinta redondos anos que por lá vivi três memoráveis meses durante a recruta do serviço militar obrigatório. Sinto uma certa nostalgia, não tanto pela experiência de vida que lá vivi, mas de ver o pequeno complexo votado ao completo abandono. Afinal de contas foi ali que assisti via têvê à primeira vitória internacional do meu FêCêPê.

Com pouco ou nenhum trânsito, primeiro nas cercanias da Quinta da Cardiga através de carreiros de terra e mais tarde pela estrada pavimentada que segue ao lado da Linha do Leste, para recuperar algum atraso da pedalada lenta e relaxada da última hora, fomos lestos a chegar a Constância. Com uma sandes trazida de casa e a boa sopa que apreciei com uma mini preta, estava pronto a dar a volta. Antes de nos despedirmos da vila, no riso saudável do convívio e na alegria do momento tivemos tempo para ir chatear o Camões!

Atravessando o Tejo pela ponte de ferro, percorrendo a N118, a rota continua para Oeste. É reconfortante pedalar e sentir-se ligado a lugares baseados em momentos ali vividos. À distância, enquanto as pernas iam girando, podia ver balançando no horizonte o lendário Castelo de Almourol. Alguém me disse uma vez que, como ciclista, explora monumentos, paisagens e destinos como se estivesse a observar objectos num grande museu. No selim da minha bicicleta, daquele poleiro eu aprecio a fusão da história com visões esplêndidas. Em Alpiarça, o cartãozinho amarelo do brevet colecciona outro carimbo e o cartão de memória mais fotografias. Foto de grupo ali mesmo junto ao conjunto escultórico concebido para perpetuar emblematicamente o ciclismo de Alpiarça.

Retirado da página da Internet do Clube Desportivo “Os Águias: “O Ciclismo foi, e é, a modalidade de maior destaque em Alpiarça. Reflexo deste destaque, é a existência de uma das melhores pistas de ciclismo do País e da sede da Associação de Ciclismo de Santarém. O Clube Desportivo “Os Águias”, foi, desde sempre, um grande impulsionador desta modalidade…”. Agradecimentos endereçados às meninas alpiarcenses pela simpatia e gentileza da fotografia.

Não há, talvez, nada tão omnipresente na tradição do ciclismo como a noção romântica de uma corrida ao longo de uma estrada no selim de uma bicicleta. Assim que fomos alcançados pelo grupeto galego dos CC Riazor, encetámos com eles um saboroso despique pelas estradas pouco concorridas e esburacadas da lezíria, até nos determos sob a ponte Salgueiro Maia para resposta a novo questionário, e uma mija.

O céu azul ia perdendo o brilho, a tarde tingia-se de uma cobertura laranja, amarelo e ouro. A cortina de Inverno flutuava suavemente através da planície. Os pneus trituravam terra, areia e pedaços de alcatrão gasto. Ligamos as luzes e por momentos ficamos meio perdidos. Ao longe, a estrutura metálica da Ponte D. Amélia servia de farol para nos orientar no crepúsculo. Já não estavamos a pedalar em ritmo de corrida, mas há um propósito na nossa cadência. Seguimos pelo corredor apertado e barulhento da ponte, deixando a via livre aos motoqueiros.

O passeio, devo dizer, estava bastante agradável. Caiu a noite e arrefeceu abruptamente. De alguma forma, quando está frio, cada protuberância na estrada parecia ser ampliada ao ponto das minhas pernas se aquecerem. Pedal, pedal, pedal. Sobe-se uma pequena colina e já não estou ciente do cansaço e do frio, excepto os meus dedos dos pés. Esses estão sempre gelados. Percorrendo a mesma rota matinal em sentido inverso, aproveitou-se para uma paragem técnica num café em Valada do Ribatejo. Foi então que me ocorreu aliviar alguma carga, mas não sei se terá sido boa ideia. Por um lado fiquei mais leve, por outro deu-se início a um certo desconforto ao nível do tubo de escape! Retomamos o caminho.

Mais dez quilómetros pelos buracos da estrada e recomeçava a ficar quente. No breu da noite ia-se vislumbrando dois pontos vermelhos ao fundo, e um pouco mais à frente dois companheiros randonneurs foram alcançados, engrossando assim o mini pelotão. Por um breve instante, a nossa pedalada bucólica pelas estradas rurais foi interrompida para permitir a ultrapassagem de dois veículos monstruosos. Quando voltávamos à calma, uma cratera no asfalto interpõe-se e três de nós desmoronaram-se no pavimento. Depois de desencaixar as bicicletas e sacudir o esqueleto, apenas se registou algum abalo e um pneu furado. Uma hora depois, chegamos juntos ao ponto de partida, entregamos o passaporte devidamente carimbado e preenchido, felizes e contentes por completar mais uma aventura.

No final ficamos para o convívio à mesa, partilhamos fotografias, recordamos todos os momentos, planeamos novas aventuras, porque juntos andámos de bicicleta. Um grande obrigado, ao Jacinto pela amizade e inspiração, ao Manuel pela simpatia e boa onda e, ao Campelo pela disponibilidade e força. A todos os randonneur participantes, velhos e novos conhecidos, um abraço e até breve(t).

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Sobre paulofski

Na bicicleta. Aquilo que hoje é a minha realidade e um benefício extraordinário, eu só aprendi aos 6 anos, para deixar aos 18 e voltar a ela para me aventurar aos 40. Aos poucos fui conquistando a afeição das amigas do ambiente e o resto, bem, o resto é paisagem e absorver todo o prazer que as minhas bicicletas me têm proporcionado.
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4 respostas a ribatejando, a crónica L’Antique 200 versão 2017

  1. Nelson Branco diz:

    Que bela aventura… parabéns a ti e a todos os que participaram.

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  2. Mário diz:

    O teu relato fez-me reviver os km que fizemos juntos, foi um privilégio pedalar ao vosso lado.
    Obrigado Paulo , além de excelente companheiro , tens uma noção da solidariedade que merece ser realçada.
    O Manuel é um motor de força inspiradora, o Campelo sempre disponível para tudo e o Jacinto…
    só posso dizer que tenho inveja do Jacinto…inveja da boa.
    Houveram momentos em que pensei que o nosso grupo poderia fazer uma volta ao mundo,
    não seria , de certeza, por falta de empatia.
    Grande abraço e boas pedaladas.

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