A apenas vinte minutos pedalados de casa para o local de depart, poderia dar a entender que os preparativos para nova rodada “randonneira” fossem mais relaxados! Só que não. Se no planeamento deste brevet e posterior averiguação in loco do percurso participei com todo o gosto, não ia faltar ao apoio com os organizadores Manuel Miranda e José Ferreira no bike check da saída. Assim, lá tive de saltar da cama pelas cinco da matina, tal e qual como se fosse viajar para Marinhas, o local habitual de saída do brevets para norte!

O prato principal é contagiar os ciclistas com a magia da Freita, mas para chegar ao ponto alto do dia foi preciso encher alguns chouriços. Os primeiros quilómetros serão mais tranquilos, cumprindo o plano mais plano. Gradualmente o ondulante perfil interior orientará os ciclistas rumo ao objectivo. Com a serra na linha do horizonte, os ciclistas vão sentir a progressiva ascensão pelo lado de Arões. Vai, quem sabe, pausar em Mira Freita. Irá resistir ao calor na escalada para o planalto. Poderá interrogar-se, “o que é isso das Pedras Parideias!?”. Não escapará à contemplação da cascata da Frecha da Mizarela… no fundo, irá maravilhar-se com locais de rara beleza e pura dureza.

Seis e meia da matina, aos poucos, os participantes foram chegando, juntando-se no parque de estacionamento da Portgás. Conversas de circunstância, revisão das regras à indumentária e às máquinas, finda a reunião preparatória, vinte e nove randonneurs e uma randonneuse perfilaram-se para a foto da praxe. Sete e meia, lentamente fomos descendo a Estrada da Circunvalação rumo ao Douro.

Passado o tabuleiro inferior da Ponte Luiz I, um bando de coletes florescentes espantava turistas errantes, colorindo a estrada ao longo da marginal de Gaia. A neblina proveniente do oceano entrava na bacia do Douro, envolvendo o inconfundível arco da Ponte da Arrábida. À passagem pela piscatória Afurada a temperatura desce ligeiramente. O ex-libris de Miramar, a Capela do Senhor da Pedra, não figurou nos álbuns fotográficos dos passantes porque, simplesmente, não se conseguia mirar nada!

Os cinquenta quilómetros iniciais são rodados em terreno plano, ao longo das ciclovias à beira-mar plantadas. Após Espinho fez-se a rodagem num troço sem trânsito, paralelo à linha de comboio, até que os ciclistas se embrenharem na ondulante e verdejante estrada florestal, de Cortegaça ao Furadouro, onde o Zé Ferreira os aguardava, munido de um mini carimbo para registar a passagem no primeiro posto de controlo, no Café Rota do Mar onde também estava assegurado o abastecimento calórico.

Com a viragem para Nascente, paulatinamente a névoa da manhã se foi e o sol voltou a dar um ar de sua graça. Com a passagem pelo centro de Ovar, da pacifica pedalada que houve até ali seria o contraste. Face ao crescente volume de trafico que iriam enfrentar, soariam alarmes com redobrados cuidados entre o pelotão.

A estrada ainda é plana, por agora, mas em breve irá dará lugar a alguns topos mais elevados. Outro ponto de indiscutível interesse foi a passagem por Santa Maria da Feira, estrategicamente incluída no roteiro. Depois de apontados os telemóveis ao imponente Castelo da Feira, os ciclistas tiveram de se amanhar por um massacrante piso paralelepípedo. Vá lá que era a descer… até ver!

A abordagem para o interior obrigou à passagem por alguns centros urbanos, prendendo toda a atenção, tanto na orientação, cautelas redobradas no atravessamento de estradas mais movimentadas, até que progressivamente as paisagens rurais com caminhos mais calmos começam a ser mais frequentes. Ali, facilmente somos testemunhas das rotinas diárias de um modo de vida mais tranquilo, onde um audível “Bom Dia” nos sai naturalmente, ao qual as pessoas devolvem o gesto com simpatia.

Cerca de dez graus acima do começo da jornada, agora que a leve ascensão na estrada nos impele para a frente, clicando nas manetes à procura de uma engrenagem mais leve e, em seguida, esgotar as possibilidades disponíveis no pedaleiro maior, uma série de colinas se intermedeiam, antecipando no horizonte o que aí vem. A vista da serra revela-nos a sua grandeza e ainda estamos a aquecer.

Na berma da estrada, um senhor idoso colocava garrafões de plástico na mala do carro. De tão ressoados que estavam os garrafões, dava a ideia que a água era fresquíssima, e indaguei: “Caro senhor, essa água vem de onde? Não vejo aqui nenhum fontanário!”. Outro homem surge do meio do mato, carregando mais dois garrafões cheios. “Ali ao fundo, e é água muito boa, podem estar seguros, mas tenham cuidado que o chão escorrega”. Fazendo uma pausa para um longo gole de água gelada, saimos dali com os bidons cheiinhos e prosseguimos a subida à conversa.

No horizonte, saídos debaixo da sombreada copa das arvores, as cores da serra e as aldeias sobressaiam no panorama. Já a subida ia a meio e só agora passávamos pelo primeiro carro desde há largos minutos. Na rota da dita “Subida mais longa”, ao quilómetro 13, alcançamos Mira Freita e a hipótese de uma paragem, não porque estivéssemos cansados, mas porque sabia d’antemão que ali haviam boas sandes de presunto e frescas cervejinhas para quem quisesse antecipar o almoço.

Sábado foi um dia em que o calor apertou e bem. Péssima hora para atacar a Serra da Freita, pensámos, mas disso a montanha não tem culpa. Nós é que quisemos estar ali, a sofrer, a derreter sob o abrasador sol do meio-dia, mas não nos podíamos queixar. O dia estava fantástico e dava para ver perfeitamente toda a paisagem que nos rodeia.

Retoma-se a subida. A estrada diante de mim é cada vez mais severa. Numa curva com vistas largas, páro para fotografar e desfrutar da agradável panorâmica. Sorvo da minha garrafa de água, procuro me refrescar aproveitando uma brisa leve, mas os níveis do mercúrio estão bem acima dos 35 graus! Ao longe, a visão do radar meteorológico relembra-me que tenho mais quilómetros de subida pela frente, e eu estou a contar com eles.

O ritmo é lento, também muito por culpa do panorama paisagístico que me envolve de sobremaneira. O suor escorre pelo meu rosto e não resisto a mais um momento de pé no chão para outra fotografia, captando alguns dos meus companheiros que me perseguem. Aqui pode-se desfrutar de uma paisagem que quase atinge o infinito. Para onde quer que se olhe o momento é de silencio, só nós, as nossas bicicletas e a fantástica paisagem. Agora sente-se uma ligeira brida de vento, mas que não é capaz de pôr as eólicas a girar.

O recorte da torre do radar meteorológico indicava que estamos quase no ponto mais alto do Maciço da Gralheira! Com ânimo redobrado, transpomos a barreira dos mil metros de altitude e alcançamos o planalto da Serra da Freita. Montes matizados do amarelo e do lilás, da carqueja e da urze, a natureza é surpreendente. Extasia-nos com maravilhas invulgares, com caminhos ancestrais, geossítios e fenómenos geológicos que originaram o Arouca Geopark. Como estas estradas são lisas e tranquilas, quase sem trânsito a atrapalhar a calmaria, e alguns montículos de bosta no meio do alcatrão revelam pistas que as vacas arouquesas pastam por ali.

Ponto obrigatório do roteiro, o miradouro da Frecha da Mizarela compensa todo o esforço que ficou para trás, para ali chegar. As chuvadas deste inverno engrossaram o rio Caima, que nasce no planalto da Freita, e ampliaram a arrebatadora beleza da cascata mais alta de Portugal Continental, ao despenhar-se a 60 metros de altura um dos locais mais emblemáticos da serra. Mais umas quantas fotografias e um pouco de conversa sobre o que tínhamos visto até ali, foi com um dos principais objectivos atingidos que nos colocamos em marcha via Merujal.

O segundo posto de controlo, na Mercearia da Montanha, prometia-nos algum descanso e reforço alimentar. Pelo tempo que demorou a chegar à mesa, nem foi necessário esperar que o caldo verde arrefecesse. Meia-hora depois e estávamos em marcha, novamente em subida, num alcatrão bem lisinho. Se a praia fluvial de Albergaria da Serra seria uma boa desculpa, alguns randonneiros acharam que sim, o passeio no parque de diversões tinha de prosseguir.

Juntamente com novos companheiros de roteiro, a estrada em excelente piso volta a empinar, refletindo as curvas sob a luz solar. Para lá da zona do parque de campismo. fora da protecção do arvoredo, somos atingidos pelo calor do ar e cozidos na fornalha do sol. Não há ponta de vento.

Uma pausa no relato para falar da bicicleta reclinada do Pedro! Subir pendentes consideráveis numa chaise long com pedais não é nada fácil. Ao contrario da capacidade que as recumbentes têm em atingir velocidades consideráveis no terreno plano, é de louvar o esforço quando a estrada se inclina à frente do ciclista. Tendo em conta a posição diferente das bicicletas convencionais, uma grande desvantagem das bicicletas reclinadas é a redução da potência devido à menor capacidade de usar as pernas contra o quadro. Por outro lado, pensava eu, não é tão simples abordar as descidas. Revela-se problemático o uso de travões convencionais em rodas de carbono. Pura e simplesmente o Pedro derreteu a pista de travagem no aro da roda traseira enquanto travava na abrupta descida para Arouca.

Chegamos a Arouca cansados do rude alcatrão e de tanto tempo a pressionar as manetes de travão. Ao vermos algum pessoal refastelado numa esplanada, que também assistia as incidências da derradeira etapa do Giro de Itália, paramos para um cafezinho e mais qualquer coisa. Passados uns minutos pusemo-nos novamente em marcha, para uns quilómetros mais à frente calcarmos a estrada rumo a Castelo de Paiva.

A N224 é uma estrada bastante prazerosa, com um perfil e envolvente muito agradáveis, curvas sensuais e absolutamente nenhum trânsito. Para além de não ter sido ultrapassado por um carro, o único veiculo por assim de dizer com que me cruzei em longos quilómetros foi uma motorizada que descia de motor desligado.

Embalados pela benesse gravitacional, subitamente calcamos os paralelos à entrada de Castelo de Paiva para nos determos na confeitaria indicada, tanto para carimbar o cartãozinho, como para voltar a hidratar e saborear um gelado… ou dois! Estávamos a um quarto de hora das 16h, só que o relógio não parava e ainda havia um quarto de percurso por pedalar. De novo com o depósito cheio, depressa estávamos de volta ao selim para mais duas horas de pedalada. Continuou-se a descer.

Com a alma revigorada, tínhamos agora a companhia do Rio Douro e o vento pela frente. O percurso pela N108 até ao Porto é sobejamente conhecido. Não sei bem porquê, desta vez os meus diabretes não apareceram para me atazanar, e aparentemente eu estava cheio de pica. Entusiasmei-me na pedalada, e sem me aperceber fui fugindo dos meus companheiros. Entretanto, “apanhei” o Rui e o Carlos que “conduzi” até às portas do Porto. Praticamente com o brevet concluído, deixei-os ir e sentei-me no trono de pedra à entrada do Parque Oriental, para espererar pelo pessoal que deixei para trás e percorrer em conjunto os derradeiros quatro quilómetros sob a frescura do curso ao longo do Rio Tinto.

Que belo dia para pedalar. Foi de facto um fantástico e inesquecível Brevet, com um grande companheirismo e, como habitualmente, mais uma irrepreensível organização dos Randonneur Portugal, nas pessoas do Manuel Miranda e José Ferreira, a quem muito louvamos o esforço e dedicação à causa. Um abraço a todos que participaram e comigo conviveram, aos meus amigos Pawel, Nelson, Jorge e em especial ao Alan, que se despediu, por agora, pois irá brevemente pedalar, entre outras coisas, para as estradas onde se circula à esquerda, para Inglaterra.

Até Breve(t), embora me pareça que pelo calendário de 2025 não poderei participar em mais algum evento randonneiro.














