Quando se está só, sentado no selim de uma bicicleta, não há nada entre o mundo que me rodeia. Não há vidro, não há metal, não há interior climatizado que me contenha a liberdade e o tempo. Apenas o devaneio e o espaço. Apenas o ar que respiro, que me torna vivo. Livre, a ambiência chega natural e envolve-me nas variáveis condições. Nos humores do clima e na ambiguidade da estrada. Os sentidos, esses, são seduzidos a cada curva.
Pedalar pelas nuances do Douro é pura alegria. A estrada empina e desempina. Tão depressa se levanta o rabo do selim como se baixa o queixo e se fincam as mãos, em alta velocidade. A bicicleta tem asas. Com o ímpeto do vento na cara, com o fôlego renovado pela companhia do exuberante vale, ganha-se um momento de emoção em mais uma fotografia, capturando coloridos lembretes da encantadora manhã, do cenário, desprezando o desconforto do selim e o protesto das pernas.
É uma bofetada de estímulos sensoriais que alimentam o espírito e regulam o corpo. É a sensação maravilhosa do vento na pele, das variações do clima. Um furor de aromas que invade as narinas, não apenas o perfume das flores mas dos campos lavrados, do pão a ser cozido e da chuva fresca no asfalto quente. Em movimento se explora tudo, a estrada, uma montanha, uma aldeia. Tudo aquilo, que me chega e uma leve brisa tem para me oferecer. As expressões nos rostos das pessoas. Um ou outro pormenor, que me prende a atenção e me recorde uma canção.
A música que se ouve à passagem, esse coro de risos e vozes, medley sonoro da natureza misturado nos fragores da humanidade. Acordes fortuitos que ficam na cabeça por algum tempo. Os maravilhosos contornos do horizonte, um padrão definido no céu, os pontos altos daquela elevação. Ao ritmo de um cágado, girando os pedais, pingando suor, a escalada não é fácil. Dentes cerrados, ritmo lento. Embrenhado no meu pensamento, envolvido numa espécie de mantra com aquele cenário à minha volta, é sempre um reforço motivacional e energético.
É espantoso o ruído que me ensurdece quando embalo na descida, sentindo as suaves vibrações das rodas no pavimento, dobrando as curvas, pisando algo solto no asfalto. Uma espécie de caos coreografado, acelerado, concentrado. Por vezes o ar é pesado, outras vezes é um quente e frio que me faz arrepiar caminho. Não preciso de ser mais rápido, apenas sentir-me vivo, decidir por onde ir, até onde quero ir e seguir no próprio ritmo.
Não importa quantas vezes eu pedale por ali, pelo Alto Douro Vinhateiro, que nunca serei capaz de compor tudo numa só imagem. Nunca serei capaz de exprimir tudo num só parágrafo. Tudo aquilo alimente a mente e a imaginação. Uma encenação dos deuses em horas de contemplação, num dos mais simples e agradáveis actos que é a alegria de pedalar uma bicicleta.
Agora, no Brasil do golpe, estamos ficando bem distantes do que posso ver nesta caminhada. Eu moro numa cidade pequena, no interior do Brasil, no Estado do Ceará em Sobral. Podia até usar a bicicleta todos os dias como meu transporte mas a violência que está se instalando no Brasil torna quase um suicídio usar a bicicleta como transporte. Vivendo em Portugal, em Aveiro, o meu transporte urbano era a bicicleta e até me aventurei de trem de Aveiro ao Porto de bicicleta para circular na magrela no Porto. A classe golpista, e burra, destrói o estado de bem social no seu egoísmo suicida criando uma sociedade violenta que é insuportável para todas as pessoas inclusive para os idiotas que pensam que se vão beneficiar com esta destruição. Circular em bicicleta, fora ser um prazer se sentir livre da caixa metálico-plástica com ar “condicionado” com direito a derivar por estradas sem continuação mas poder sentir o meio ambiente é impagável. O cantante brasileiro, Luís Gonzaga registou (escrevi registrou, mas o corretor português sublinhou como errado, por desconhecer o acordo ortográfico…) num dos seus poemas que “aquele que anda a pé, vê como galo campina que muda de cor quando canta ou mete os pés nos riachos…” e o mesmo sentimos nós quando circulamos na magrela e produz bem estar mental, saúde física, tranquilidade emocional na certeza de que não se está estragando o meio ambiente, ou mesmo, até um sentimento de pertinência ao meio ambiente. E circulando acompanhado o prazer se redobra quando numa parada podemos sentir um ao outro, trocar beijos com a boca molhada da água do cantil. Diga-me se um motorista de carro pode dizer o mesmo?
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