Os caminhos são criações humanas, vestígios de uma civilização, das necessidades existentes das populações, facilitando a rápida afluência de bens, comércio, pessoas e correio. Desde a Pré-História, da rede viária romana, que os nossos antepassados calcorrearam trilhos para a ligação entre várias civitate, foram rasgadas estradas medievais, simples caminhos antigos de transumância, onde desde tempos idos os peregrinos para Santiago de Compostela caminhavam, paravam e descansavam.
O mote do Brevet CaMinho 200 era o de percorrer alguns desses caminhos antigos e velhas estradas nacionais do presente, onde muita poeirada se levantou. Para além das inevitáveis estradas principais, iríamos seguir o traçado de várias estradas secundárias, de 3 ª classe, assim definidas no primeiro Plano Rodoviário Nacional, que surgiu em 1945. Foi afinal mais um pretexto para novo encontro randonneur no Posto da Cruz Vermelha de Marinhas, Esposende.
Formalidades concluídas, bicicletas veneradas e reunião de esclarecimento cessada, “vamos lá antes que chova!”. E não demorou muito. Seguramente não haveria melhor forma de iniciar a pedalada competindo contra o vento e a chuva, que nos haveria de acompanhar durante os primeiros trinta e tal quilómetros pela sensaborona N13, em direcção ao Porto. Em Vilar, revertemos a marcha e entramos na bucólica N306, em direcção ao Minho.
À chega ao primeiro posto de controlo, em Gião, a malta deu com a cara na porta do Café. Enquanto ia diminuindo a fila para o visto no cartão amarelo chega a patroa, desculpando-se com o despertador. Quando viu os primeiros possíveis clientes virarem costas ao Café Costa, lamentou-se! “Olhe, abrisse cedo e teria vendido a pastelaria, assim!…” lembrei-lhe e pus-me a caminho.
Para além da chuva a manhã estava fria. Normalmente eu me envolvo em camadas de roupa térmica para evitar o frio, mas normalmente quando chove a solução é recorrer a vestuário impermeável. O problema é a humidade. O corpo aquece, sua, e sob o efeito estufa a roupa fica molhada, deixando aquela sensação de estar embrulhado em papel absorvente. A leva de uma muda de jersey tornou-se uma boa solução e, mais tarde despi o ensopado casaco térmico que foi secando pendurado no estendal do rack traseiro.
Depois de uma paragem técnica junto à estação de comboios de Barcelos, deambulamos pela cidade e retomamos a N306 em direcção a Ponte de Lima. Se bem se lembram, há duas semanas, havia feito com os compinchas Jacinto e Couto uma voltinha recreativa por ali, mas na altura, a partir dali, as bicicletas levaram-nos pela N204, estrada também muito bonita, também pouco concorrida, mas bem mais amiga das pernas dos ciclistas.
Não há, talvez, nada tão omnipresente na tradição do cicloturismo como a noção romântica de pedalar ao longo de uma estrada rural numa bicicleta inglesa. A Tripas é uma bicla bem à portuguesa, tem anca e bagagem larga para levar carregos. Num passeio pelo campo, parecia apropriado ter levado nos alforges um garrafão de tinto, um tacho com arroz de tomate e bolinhos de bacalhau. Mas não! Sentia a bicicleta mais pesada mas era eu que estava perro e mais lento! Continuei calmo e tentei não me preocupar. Mesmo assim, fiquei um pouco surpreso com a minha aparente falta de velocidade.
Os céus nunca se abriram de maneira significativa, e quando finalmente atravessamos as pedras da velha ponte romana de Ponte de Lima, reencontramos a N306. As nuvens deixavam passar alguns raios de sol que, aliados ao empinar do asfalto, aumentaram gradualmente a temperatura.
Uma das coisas agradáveis das estradas secundárias do interior é a calma com que sentimos o carácter das aldeias por onde passámos, os lugares com nomes incomuns ou nomes confortavelmente conhecidos, mas que ali estão fora de contexto. Ao longo da velha estrada vemos florestas, mas a paisagem rural é na sua maioria agrícola, pasto entregue às vacas, porcos e galinhas. Os cães, às vezes levantavam um olho desinteressado, quando passávamos.
Até chegar a Paredes de Coura faltavam dez íngremes quilómetros, e os meus músculos, aparentemente em desacordo com o cérebro, ditavam a cadência, muuuuuito lenta. Mas havia um propósito no meu ritmo, desfrutar vagarosamente da manhã, parando aqui e ali para dar uso ao meu telemóvel, que nestes passeios não tem servido para outra coisa senão como uma oportuna câmara fotográfica. Quando paro para “reflectir”, o suor escorre pelo meu rosto e aproveito o momento para fazer uma fotografia, evaporar algum suor e arrefecer o motor. Prosseguia em transe mental, desprezando as pernas doridas, deliciando-me com as belas paisagens minhotas, o verde e o azul, os lugarejos aparentemente esquecidos mas bem cuidados, o prazer de estar ali a usufruir de um dos subprodutos mais atraentes de ciclismo, o cicloturismo. Quanto mais lento melhor para desfrutar da viagem. Quem quer que a subida termine!?
E lá terminou, em Rendufe… ufe! E eu agradeci, especialmente por estar já bem pertinho do posto de controlo nº 4 em Paredes de Coura, onde uma ou duas sopinhas e um prato de comida iriam me dar novo vigor. Mas a malta que primeiro chegou à Pizzaria Romântica acabou com a panela da sopa – vá lá que ainda tive direito à última colherada – e, depois de carimbar o passaporte, o quarteto de cordas foi tirar a barriga de misérias com uns saborosos filetes de pescada, a preço muito mais romântico, no Restaurante Snack-Bar “O Furão”. Repostos os níveis, iríamos digerir os próximos quilómetros de uma longa descida pela N303 ao encontro do Rio Lima, em São Pedro da Torre. Depressa chegamos à Linha do Minho e ao seguinte posto de controlo, no Café da Estação, mas achei que ainda era cedo para o lanche.
Sempre se enalteceu a engenharia e imponência da rede viária construída pelos romanos. O rigor técnico do traçado; a sólida colocação do piso; a majestade das pontes; o domínio gravado nos miliários… Grandiosa e eterna. Mas do que estes romanos não se lembraram foi construir uma ecopista fofinha ao longo do Rio Minho. Eu e o Jacinto já havíamos experimentado o tapete vermelho ocre desta bonita e tranquila Ecopista, entre o arvoredo, campos de cultivo e as águas do Minho, de Valença a Gondarém, passando por Cerveira. Habitualmente muito concorrida, cruzamos com poucos ciclistas e peões que habitualmente povoam e circulam na Ecopista, provavelmente desanimados pela instabilidade climática.
Pedalávamos à conversa, tão relaxados que a certa altura os relógios das bússolas electrónicas davam cinco horas e meia! Apertados com o tempo arrepiamos caminho e, uma hora depois à passagem por Caminha, os relógios das bússolas electrónicas continuavam nas cinco horas e meia!!! Mau… Quer dizer, fomos enganados pelo fuso horário de nuestros hermanos! Fixe.
O que não foi fixe foi quando percebemos que não íamos tirar proveito da Nortada ao longo da N13. O vento contra, de sul, era absolutamente feroz e tornou a viagem de retorno pela orla marítima um teste no túnel de vento, num ritmo difícil e lento. O quarteto separou-se e eu estava sozinho, quando sou surpreendido – pois para mim deveriam estar bem mais à frente – e ultrapassado pelos CC Riazor com o Jacinto na cauda do mini-pelotão. Aproveito o comboio por um par de minutos. É fácil aumentar a velocidade aproveitando a força do grupo rasgando o ar, mas quando se está no elástico e no limite das forças depressa se acaba a gasolina e voltei de novo a ficar só, contra o vento. Por essa altura um lanche ajantarado vinha a calhar. Reagrupamos mais à frente e paramos em Viana do Castelo para comer qualquer coisita. Depois, foi pedalar o que faltava pedalar e até chegar, voltar ao ponto de partida, nada de assinalável houve para contar.
Tenho no entanto de falar maravilhas e dar foco ao extra que a Tripas ganhou e testou neste brevet. Montado um mecanismo de rotação, o cubo SP VP-8 36H, numa roda da frente nova, alimentando um farol Busch+Muller IQ-X, tão útil quanto fácil e divertido de usar, não só melhorei o alcance luminoso, como me proporciona maior independência em todos os períodos de obscuridade, permitindo que enfrente a noite com protecção e segurança. Um upgrade fantástico, encaixa bem na harmonia estética da bina e acabaram-se as pilhas, baterias e arrelias. Obrigado iNBiCLA, excelente trabalho.
Mais uma vez foi um prazer pedalar ao lado do Jacinto do Manuel e do Campelo. A todos os randonneur participantes, velhos e novos conhecidos, um abraço e até breve(t).
Mais uma história fantástica por estradas fantásticas… podia ter sido uma aventura no fio da navalha, mas aconteceu ser na ponta do elástico! Há dias assim… mas são estas histórias que deixam mais sumo na hora de espremer a coisa.
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eheh, bom comentário Nelson. Deixa que te diga que a coisa foi tão espremidinha que se aproveitou tudo até o mosto.
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