Rabo no selim – um texto que começa com referência ao rabo deve ser interessante, deve!… – mãos firmes no alinhamento dos drops – para os leigos, drops são as extremidades do guiador, ok?… – duas rodas que obedecem ao impulso dos pedais e dou início à pedalada. Invariavelmente assim começa a diária pedalada para o trabalho, que oficialmente começa à porta do meu prédio. As voltas e passeios ao fim de semana têm o mínimo de planeamento. Têm sempre as maiores expectativas, com intenção para que o passeio seja mais um memorável evento para a vida.

Os melhores dias de férias reservo para as minhas aldeias. Desta feita, o ponto de partida foi à porta da pequena casa onde viveram os meus avós, na aldeia das Mós. Manhã encoberta, a aldeia deserta, parto à emoção. Sem horários, sem urgência, o sorriso estupidamente satisfeito do ciclista e a minha bicicleta. Estrada fora, pela quietude da Natureza, pedalando entre as vinhas, as amendoeiras, a passarada e os sons incógnitos de bichos furtivos. Um caminho bucólico.

Esbugalho os olhos e escancaro as narinas. A bicicleta é parte do meu ser e a estrada está toda por minha conta. A agradável descida com curvas acentuadas traz-me o aroma das uvas. Fecho os olhos e inspiro. Sinto cada fenda, cada solavanco, balanço e tremo a cada mudança das saliências da velha estrada. No reencontro com o rio, que é d’ouro, inclino-me e aperto os travões. Refreio a emoção, detenho-me em silêncio e disparo mais um clique. Repetidamente.

No constante movimento sobre o asfalto, o chão inclina e calco os pedais. Ao longe ouve-se o comboio que leva gente pelas curvas do rio. Sinto o motor de um carro, cada vez mais perto de mim, ecos de uma civilização enfurecida com este ser humano que sai do alinhamento. Avanço com confiança, subida após subida. Os pensamentos voam. A paz e a contemplação na perfeita simbiose. A serra deve ter açúcar.

Não admira que arranje todos os pretextos para parar, olhar para a paisagem ou para me refrescar na água fresca de um fontanário. Simplesmente parar para recomeçar. Também não é estranho não parar, e acelerar estrada abaixo até um minúsculo ponto que cresce com o desejo de lá chegar. Tudo é possível quando a adrenalina espalha o seu efeito. Quanto a mim, só queria, como se pudesse, parar o tempo.

É mais ou menos como uma experiência extra corporal, como quando contemplamos um sonho, onde sabemos tudo e dominamos tudo. Porque é quase mágico, às vezes apenas queremos nunca sair dali, ou então sair a voar, como um falcão que plana lá em cima, domina o vento e tudo vê cá em baixo. Os cheiros, o ar quente, o suor, as sensações têm o seu retorno. Os fluxos de água, as casas antigas, os resistentes das aldeias, a pintura de uma paisagem majestosa e subjugada pelo Homem. Não estou só.

Impregnado de sabor deste pedaço de maravilha, o momento da verdade chega. Mergulho no rio. Estou em casa… quer dizer, o piquenique está servido. “Olá pessoal”. Não importa quantas vezes eu pedale por ali, pelo Alto Douro Vinhateiro, que nunca serei capaz de compor tudo numa só imagem. Nunca serei capaz de exprimir tudo num só parágrafo. Tudo aquilo alimenta a mente e a imaginação. Uma encenação dos deuses em horas de contemplação, num dos mais simples e agradáveis actos que é a alegria de pedalar uma bicicleta.

Fantástico!
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Que maravilha… não há dinheiro que pague estes prazeres.
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Uma das maravilhas da vida
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O verdadeiro espirito pelo qual por vezes vale à Pena sofrer quando pedalamos..
Ir e vir voltar e sorrir
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