[…] Porque não havemos de ir pelo caminho mais bonito? Porque é que vamos sempre com pressa, sem tempo de reparar nas mudanças dos dias e das luzes e dos verdes? Porque é que não aprendemos com os turistas que gastaram dinheiro para vir para aqui olhar para as coisas em que já não reparamos? […]
Para emoldurar o postal d’hoje pego numa das fotos que captei antes d’ontem, durante o meu commuting pós-laboral, ao longo do caminho mais bonito. Depois de oito horas de trabalho, e sempre que é possível, pedalo de volta a casa através de lugares tranquilos, sem qualquer senso de urgência, multiplicando distâncias. Na minha bicicleta a estrada é plana, a cidade é feliz. Me sinto um afortunado. Vou onde o tempo parece fazer uma pausa, absorvendo o momento, as temperaturas, os cheiros, as cores dos dias. Pairando no vento, paro quando sinto vontade de fazer mais uma fotografia. Procuro aqueles agradáveis instantes de luz solar, onde a magia da cidade maravilha turistas e também ciclistas. Aproveito todos os momentos.
Para emoldorar o quadro diário, o mote é um excerto da belíssima crónica de Miguel Esteves Cardoso “A cegueira diária“, publicada na edição de ontem do Público.
De seguida copipasto a crónica na íntegra:
“Portugal está cheio de caminhos secretos, mas não são necessariamente os mais bonitos. Os caminhos mais bonitos até são conhecidos — basta ter a carta correcta e fazer umas perguntinhas —, mas as pessoas evitam-nos, porque são demorados. Para se perceber o absurdo vou repetir: os portugueses evitam os caminhos bonitos, porque demoram bastante tempo a percorrer. Sim, a beleza prolonga-se no tempo. Não é só um minuto ou dois de encantamento. Pode ser mais de uma hora. É inaceitável.
A vida é curta de mais para ir pelos caminhos feios. Encafuamo-nos em casa ao fim do dia e só saímos no dia seguinte para trabalhar. Para trabalhar encafuamo-nos num edifício, de onde só saímos para voltar para casa. O caminho entre estes dois encafuanços é muitas vezes a única viagem do nosso dia. O caminho pode ser a nossa única liberdade, o nosso momento de vida selvagem, umas pequeníssimas férias, só ligeiramente proibidas, mas por isso mesmo mais merecidas.
Porque não havemos de ir pelo caminho mais bonito? Porque é que vamos sempre com pressa, sem tempo de reparar nas mudanças dos dias e das luzes e dos verdes? Porque é que não aprendemos com os turistas que gastaram dinheiro para vir para aqui olhar para as coisas em que já não reparamos?
Aprende-se muito quando se está a mostrar a nossa terra a uma pessoa amiga. Escolhem-se os caminhos que mais cantam, aqueles para os quais nunca temos paciência. O pasmo da nossa amiga abre-nos os olhos para a cegueira da nossa preguiça e falsa, falsa economia.”