Com um brilhozinho nos olhos voltei às curvas da EN108. A velha estrada património liga-me a Frende, leva-me até ao “Castelo”, a um lugar de afectos, à aldeia dos meus avós, à terra da minha mãe. Assim que passei a barragem senti o vento quente que me batia forte, de frente. Lentamente, o sol foi expondo a agradável palete de cores que me iria acompanhar neste Outonão, ou Verono, o que lhe queiram chamar! Eu sabia pró que ia. Sem qualquer senso de urgência, pela frente iria ter cinco a seis horas de pedalada para pouco mais de cem quilómetros, invariavelmente difíceis, constantemente contemplativos. Sabia também que depois de um Verão e Outono severamente secos (já choveu, mas não o suficiente) a tristeza e revolta me iriam devastar os sentimentos. Na panorâmica pedalada ao longo da marginal do Douro, o trecho desde Rio Mau até Entre-os-Rios só me trouxe o cheiro a queimado e a vista enegrecida. Do que antes era verdejante e pleno de vida estava triste e inerte. Transposto o Tâmega, felizmente a paisagem retomou as cores naturais e os cheiros característicos.
Dona Etielbina não me perdoou. Parecia castigar-me por tê-la negligenciado, mas se o carrego e a roçadura me dificultavam a progressão, eu estava a borrifar-me para ela. Eu não tinha muita pressa! Parei sempre que tive vontade de fazer uma fotografia, de trincar uma bucha e encher o cantil. A excursão estava tão agradável que depois da Pala, onde o asfalto é mais custoso, sentia-me como que levado ao colo. As mudanças mais levezinhas da velha bina têm o benefício de me aligeirar o peso das pernas e de tornar o meu ritmo mais vagaroso e deleitado. Especialmente na parte onde se suam bem as estopinhas, aproveitei cada bocadinho de chão. O ciclismo através de lugares tranquilos, estradas desertas, num mundo de paz e silêncio, sem nenhum horário para cumprir, é retemperador. Mas as nádegas exigiam uma trégua e o selim aproveitou, ou terá sido ao contrário!? Propositadamente, planeei a já tradicional paragem na mercearia de Dona Mariazinha. Comprei-lhe duas bananas, que foram comidas ali mesmo, pusemos a conversa em dia, de como vai a vida, enquanto saboreava o inevitável copinho de Moscatel. E claro tirei a fotografia da praxe, sentado à porta, no relaxe.
A manhã estava longe de acabar e o ciclista teria ainda muito que pedalar. Sozinho, enfrentando a lestada que soprava cada vez mais forte, continuei a rodar os pedais ao longo da mesma estrada, a subir e a descer, a curtir e a viver… quando sou abruptamente interrompido do meu devaneio porque um saco plástico trazido pelo vento se enrolou na corrente e não queria sair. Prontes, lá se foi a delicada afinação que Mister Barbosa lhe tinha deixado. A partir daqui Dona Etielbina teve uma mudança de humor, algumas engrenagens saltavam e rangiam, mas aqui o ávido ciclista não se importunou com a mudança de ritmo e continuou a impulsionar os pedais. Parou e fotografou, pedalou e reclamou, parou e almoçou. Chegou lá como um passageiro de uma viagem captadora de todas as emoções.
Após reviver momentos inesquecíveis juntos, deixei a velhota na sua nova moradia, lar doce lar, confortável na sua reforma dourada, preparada para me receber, com ela descer ao rio, me esgueirar por estradas e estradões desertos, me transportar pelo fascinante mundo das montanhas, me ajudar no enquadramento das fotografias, me levar a ver paisagens, sentir os cheiros, os sabores, as subidas, as descidas, os trilhos, as pessoas… A mui antiga, ogre e sempre leal Dona Etielbina vai ficar por ali, disponível, à minha espera, sempre que eu volte a um Lugar que tem um lugar reservado no meu coração.
Depois fui apanhar o comboio.