teve graça, e eu ainda não tinha subido à Senhora da Graça!

Sexta-feira à tarde. Está um gajo sossegado a empaliar serviço, a fitar o relógio e magicar um fim de semana de praia a torrar ao sol, chega o Rui e deita água na fervura! “E amanhã, vamos à Senhora da Graça?!…” À resposta mental, “Tem graça, ainda não subi à Senhora da Graça!”, seguiu-se a verbal, “Bora lá combinar isso.”

Senhora da Graça #8

Só conhecia a mítica subida do Monte Farinha à Senhora da Graça das transmissões da Volta a Portugal. Em comentários avulsos com quem já a havia pedalado até ao cume, sabia da dureza da escalada e da deslumbrante paisagem que se pode ir desfrutando. Há muito que esta etapa estava prometida. Consultados os músculos, os astros, e o horário do comboio urbano até Guimarães, tudo se conjugou então para que se cumprisse a conquista da Senhora da Graça.

Senhora da Graça #1

A ideia de aproveitar o comboio foi, basicamente, para atingirmos o objectivo antes da hora do almoço. As previsões de calor intenso aconselhavam-nos fazer a escalada durante a manhã. À tarde, desceríamos o Tâmega até Amarante e, a partir daí, dois planos estariam em análise: o plano A, que previa rumarmos ao Douro e regressarmos ao Porto pela frescura da EN108; ou o plano B, que caso as pernas reclamassem e o calor apertasse, previa darmos um gafunho no rio Tâmega e  fazermos depois o desvio até Caide de Rei, onde um comboio faria o favor de nos dar boleia até casa. Mas mais experiências iriam ser postas em prática, não só de modo a poupar as pernocas para as subidas, mas, sobretudo, aproveitar a acalmia das pistas, ecopistas e afins.

Chegados a Guimarães e consolados os estômagos, a primeira tarefa foi dar com o início da bela e interessante pista de cicloturismo. Em 1986, a linha ferroviária que unia as cidades de Guimarães e Fafe foi desactivada e entretanto transformada em pista de cicloturismo. É uma agradável solução e alternativa sossegada à EN206. Nos seus cerca de 14 km’s, a pista estende-se paralela ao rio Vizela, cruza aldeias típicas, bosques e áreas predominantemente rurais, proporcionando a harmonia perfeita entre a natureza, vários elementos de valor arquitectónico e patrimonial do antigo ramal ferroviário, que conferem um interesse especial ao percurso.

Uma vez em Fafe, pela frente seguiu-se o desassossego da EN206 na ascensão até ao Alto da Lameira. É uma subida pouco pronunciada mas extensa, conhecida desde a minha passagem no Brevet 300 Baixo Minho e Barroso. Deu para me aborrecer com uma ou outra razia automobilista, mas sobretudo deu para aquecer as pernas e o cachaço, pois o calor já se fazia sentir. As eólicas ficaram para trás e veio então a saborosa e longa descida rumo ao Tâmega. À passagem por Gandarela, fêz-se o desvio para a EN304, uma das mais belas estradas deste país, que nos levou descontraídos até Mondim de Basto. A esplendorosa panorâmica do Alvão ia-nos sendo revelada, sempre com o prenunciado Monte Farinha em primeiro plano, engrandecendo e nos provocando ao desafio. Várias paragens foram inevitáveis para deliciar a alma e encher a teleobjectiva de fotografias.

Depois de reabastecer de água e coragem, a pedalada prosseguiu tranquila pela EN312 até ao primeiro desvio para o cume. De peito feito à inclinação inicial do asfalto, deu para perceber a dimensão do esforço exigido a quem sobe até lá acima. São 8,5 km’s de ascensão, intercalados por violentas cotoveladas e pouco descanso. À passagem pelo parque das merendas, o aperitivo era cada vez mais salgado. O suor ia caindo em bica, cada sombra na estrada era disputada e a cada golada o ritmo diminuía. A estrada empinava inapelável à rotação pesarosa dos pedais e a paisagem absorvia a nossa atenção. Após o brinde do bendito fontanário, definitivamente o trigo separou-se do joio. O banho quase integral fez-me bem e regenerou-me para o próximo quilómetro. Parecia estar dentro de um forno, a cozer lentamente.

Passamos dois ciclistas, outros malucos, estes em bicicletas de montanha à rotação de 10 pedaladas por metro percorrido. O termómetro do ciclocomputador marcava 43 graus!!! Os 2 quilómetros finais, se já são demolidores, feitos no pico do calor são um verdadeiro martírio. Como tal, foi em ritmo muuuito descontraído e calmo, que numa hora de pedalada chegamos finalmente à recompensa e ao deslumbramento. Que paisagem, que vastidão. Do alto do Monte Farinha olha-se em redor e dá para perceber porque dizem ser aquele um dos lugares com as vistas mais espectaculares que temos em Portugal. É fantástico, aquilo: o misticismo, o ar puro, as paisagens, as vertigens… mas o corpo já reclamava o almoço, e então descemos com cuidado até à primeira tasca de Mondim. Ficou-me a vontade de lá voltar, quem sabe, num dia de etapa da Volta!

Amarante seria o próximo destino e a ecopista do Tâmega o tapete perfeito para lá chegar. Entramos na pista junto à abandonada e degradada Estação de Mondim. A ecopista resulta também da reconversão de um antigo ramal de comboios, a linha férrea do Tâmega, que ligava Amarante a Arco de Baúlhe. Percorridos cerca de cinco quilómetros, voamos até ao considerado “quilómetro zero”, o centro nevrálgico da ecopista em Celorico de Basto, onde existe um espaço museológico, uma antiga carruagem, equipamentos de descanso e lazer. A estação foi recuperada e é uma relíquia.

Com o Monte Farinha quase sempre presente, o rio bem lá ao fundo, por entre quintas de campos cultivados, áreas florestais e paisagens muito bonitas, menos tolerável é a imensidão de obstáculos desnecessários chamados de “balizas de segurança” que tivemos de ziguezaguear. A cada cruzamento, estradão corta-fogo ou carreiro no meio do nada, existe sempre uma barreira. São verdadeiramente desesperantes para quem pedala…

Durante cinco quilómetros, entre Chapa e Codeçoso, o piso é em terra batida, o que torna a pedalada divertida. Pelo menos ali não existem as tais barreiras nos cruzamentos com os corta-fogo. À parte do pó e de um carreiro escavado pela água, que pisei e me estremeceu todo, o piso é suave q.b. para as nossas rodas finas. As sombras adoçavam as ondas de calor e quando penetramos o granítico Túnel de Gatão, o único nesta ecopista, entramos num agradável frigorífico, onde gostaríamos de ter ficado. A água dos bidons há muito se havia esgotado quando, e onde outrora existiu uma estação com abastecimento de água às locomotivas a vapor, descobrimos um pequeno tanque com bica a deitar água fresca. Foi atestar e tomar banho, de alto a baixo.

Às portas de Amarante já havia unanimidade, o plano B seria posto em prática mal tivéssemos a informação como chegar à praia fluvial. E foi ali mesmo, 37 graus à sombra que, de maillot de bain e superbock na mão, estes dois cicloturistas resolveram ficar de molho. Mais tarde, consultado o horário dos comboios que saíam de Caíde, o percurso aconselhado pelo taxista de praça foi aceite. Evitamos assim a confusa EN15 e optamos pelo desvio por Vila Meã pela mais tranquila EN211-1 e depois pela EM566 por Oliveira. Mas não se julgue que por serem mais tranquilas, com menos trânsito, não fossem as subidas um belo petisco! Ao sábado não há muitos comboios e o das 18h58 não ia esperar por nós. Chegados à estação, entre a compra de bilhetes, uma coca-cola e uma mija, cinco minutos restaram para esticar as pernas e respirar fundo. Um belo passeio com cento e trinta quilómetros nas pernas, um belo dia de convívio acumulado, um banhoca delíciosa, e estávamos de volta a casa.

Senhora da Graça #34

Pode parecer masoquismo pedalar cabeça ao sol e termómetro no vermelho, mas sabe bem uma boa subida, ficar esmagado pela paisagem, para depois sentir a descida e uma banhoca. Venha então a próxima.

 

Sobre paulofski

Na bicicleta. Aquilo que hoje é a minha realidade e um benefício extraordinário, eu só aprendi aos 6 anos, para deixar aos 18 e voltar a ela para me aventurar aos 40. Aos poucos fui conquistando a afeição das amigas do ambiente e o resto, bem, o resto é paisagem e absorver todo o prazer que as minhas bicicletas me têm proporcionado.
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