Antes de entrar no tema que me traz de volta, devo reforçar a minha opinião pessoal sobre o aproveitamento da adaptação dos abandonados canais de linha ferroviária em vias pedonais e cicláveis. A forma como nas décadas de 80 e 90 do século passado foram encerradas muitas linhas de bitola estreita, meramente pelo quero, posso e mando político, sem dar cavaco aos interesses do povo, e que foi bastante prejudicial em termos sociais e económicos para as populações e para o comércio que do comboio se servia, foi crime de lesa pátria. Nesses anos os governos cavaquistas arrasaram por completo a maior parte das infraestruturas ferroviárias do país, argumentando com interesses economicistas, o que permitiu a delapidação do património ferroviário pelos interesseiros da clientela de pacotilha.

Evidentemente que seria necessária uma restruturação e modernização da rede ferroviária nacional face ao investimento e desenvolvimento de infraestruturas rodoviárias, associada à lentidão do comboio perante o concorrente rodoviário, mas temos de admitir que alguns encerramentos foram injustos e funestos para as populações, no combate à interioridade e no desenvolvimento económico dessas regiões. Parece haver agora alguma vontade política para reverter alguns desses erros e reabrir algumas linhas, como tem sido a eterna promessa de recolocar os carris, reconstruir as estações e apeadeiros degradados, abrir as pontes deixadas ao abandono, da antiga Linha do Douro, no troço entre o Pocinho e Barca d’Alva! Só que nada de concreto se tem feito.

O percurso da Ecopista do Tua, desenvolve-se pelo canal da antiga Linha Ferroviária do Tua, que em Foz-Tua fazia a ligação com a Linha do Douro e dali levava os passageiros em linha estreita para o interior transmontano. Em 1887 foi inaugurado o primeiro troço até Mirandela e em 1906 foram completados os seus 133 kms de extensão até Bragança. No seguimento dos encerramentos unilaterais de muitas linhas férreas deste país, em 1991 o troço entre Bragança e Mirandela foi definitivamente encerrado. Os carris e o material circundante foram sendo retirados, mesmo perante a oposição e os protestos das populações. Em 1995 foi reaberto o troço entre Mirandela e Carvalhais para o Metropolitano de Superfície, sendo a exploração do serviço de passageiros realizada pela empresa “Metro de Mirandela”, serviço que já foi desactivado. A circulação ferroviária manteve-se entre Mirandela e Foz-Tua, entrando sucessivamente em declínio, resultando em graves acidentes ocorridos entre 2007 e 2008. Os carris são então arrancados e é iniciada a construção da barragem de Foz-Tua, o que leva ao encerramento definitivo desta linha de comboios, considerada por muitos (infelizmente nunca a percorri) como uma das mais belas do mundo.
A reconversão em ecopistas, ecovias e ciclovias destes antigos canais ferroviários é uma forma dos municípios aproveitarem e preservarem parte deste património abandonado. O investimento para fins recreativos e turísticos permite ao novo utilizador conhecer o remanescente património paisagístico e arquitectónico das antigas linhas de comboio. Desta forma pode-se conhecer, ou recordar, quase à mesma velocidade das viagens do passado, o traçado serpenteante destes canais rasgados pela força do Homem. Contemplar paisagens magníficas sobre os vales escarpados dos rios. Conhecer a riqueza cultural, a natural e das populações. Visitar recantos deste património da humanidade entre socalcos e serras. Divulgar a cultura de um Portugal profundo e que era tão bem servido por este magnifico meio de transporte.

Nesta epopeia de três dias, o cicerone Manuel Couto e este que se fez convidado viajamos com as nossas companheiras de duas rodas no comboio Miradouro ao longo do rio Douro para, no Pocinho, iniciarmos a pedalada, tendo como destino final a pequena aldeia transmontana de Romeu. Ao invés da primeira vez que lá fui, e que percorremos de bicicleta o que resta da antiga Linha Ferroviária do Corgo entre a Régua e Vila-Real, desta vez aproveitando o asfalto da EN102, em lugar de reviver o gradual esplendor panorâmico da Ecopista do Sabor, encurtamos de sobremaneira a pedalada, sem, no entanto, acumularmos um bom esforço para lá chegar.


O primeiro contacto que tive com a ciclovia da antiga Linha do Tua foi no curto troço asfaltado dentro da cidade de Macedo de Cavaleiros. No centro, a antiga estação foi remodelada e reparei no cuidado que tiveram em construir uma espécie de “estação de serviço” para os ciclistas, com biciparques, ponto de carregamento para e-bikes e uma estação para lavagem e pequenas reparações. Ponto negativo que tenho a apontar são os inúteis balizamentos existentes ao longo da ciclovia. Certamente que estruturas deste tipo se justificam para a segurança dos ciclistas, sobretudo no cruzamento com as estradas, mas no caso, muitas delas não se justificam e só dificultam a passagem dos ciclistas, especialmente aqueles que viajam em modo bikepacking com alforges laterais nas bicicletas. Depois, o ciclista mais afoito para evitar entrar nestas “ratoeiras” passa à volta em algumas delas!

Após o jantar, e de iluminação ligada pela estrada afora, fomos dormir a Romeu para continuarmos a jornada no dia seguinte.
(aqui o registo “stravico” da jornada)

Antes de darmos ao pedal, juntou-se o Joel e assim se formou um trio ciclocurioso, um numa bêtêtê pura, outro numa espécie de motocross a pilhas e eu numa aspirante a gravel bike e que se fez grande. Seguindo a primeira sugestão do Couto, fomos revisitar e dar a conhecer ao Joel as memórias de Clemente Menéres, industrial portuense que nos finais do século XIX revolucionou a região, especialmente na exploração da cortiça. Abandonámos as bicicletas no mato e subimos a fraga granítica onde se tem um dislumbre mágico da Natureza envolvente.


Pelo caminho confirmou-se estar aberto à circulação o ultimo troço recuperado do antigo canal ferroviário da Linha do Tua e assim se decidiu rumar a Macedo de Cavaleiros. O traçado em gravilha está inserido na mata do Quadrassal, uma extensa mancha natural de sobreiros e bosques de sobreiro e zimbro. Território integrado na Rede Natura 2000, uma área protegida tutelada pelo Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas, que abrange a União de Freguesias de Avantos e Romeu, as freguesias de Cedães e de Vale de Asnes, no concelho de Mirandela, e a freguesia de Cortiços, no concelho de Macedo de Cavaleiros.

Depois de um reforço calórico decidimos ir pedalar junto às calmas águas da Albufeira do Azibo, por um trilho suave, local de grande beleza e importância turística, mas sobretudo ecológica. Depressa chegamos à famosa praia fluvial, onde nos detivemos para um bom almoço e dali traçarmos os objectivos para o resto do dia, antes do regresso à aldeia de Romeu para o repasto no Restaurante Maria Rita.
Ficou logo decidido que iriamos fazer o trilho em “loop” de 25km à volta da albufeira, mas ainda antes dessa aventura, e para se fazer uma boa digestão, demos uma saltada a Podence para algumas tropelias. A aldeia estava muito mais calma, tendo em conta a última vez que por lá andei, e depois de umas fotos e explorações, os caretos não quiseram saber de nós, e nós descemos de novo à praia, para o inevitável mergulho antes da boa da suadela.


Ainda envolvidos pela serenidade das águas azuis da albufeira e pelas margens arborizadas que a rodeiam, aos poucos a rota tornou-se desafiante. O trilho sai das margens e à passagem junto à aldeia de Santa Combinha dá-se o inicio a um sobe e desce sem misericórdia. A minha Maneirinha não se fez rogada, nem aos declives e muito menos ao terreno inóspito para uma bicicleta com pneus de 30mm! Claro que, para o meu bem-estar físico, respeitei o terreno e apeei nos pontos mais complicados do percurso, especialmente quando tinha demasiada areia e pedras soltas.


À medida que fomos explorando uma das joias naturais de Portugal, deixamos de vislumbrar as águas e ficamos embrenhados pela mata de sobreiros, pela solidão e pela vida selvagem. Consultando o traçado no GPS, mergulhados na beleza da natureza e desfrutando de vistas deslumbrantes, descemos de novo à tranquilidade das águas da albufeira e a um céu repleto de nuvens lenticulares. Por alturas da barragem do Azibo seguimos por estrada para Vale da Porca, onde após um lanchinho e pedalada mais rápida, junto ao antigo apeadeiro de Castelãos retomamos o alcatrão da Ecopista. Deste local em diante, na direcção de Bragança, o antigo troço da Linha do Tua permanece abandonada e à espera da reconversão. Recolocamos os pneus no asfalto da ciclovia e mais à frente a terra batida da Ecopista em direcção a Romeu.


Definitivamente esta rota é perfeita para caminhantes e amantes da natureza, para o lazer de um dia em família, para ciclistas de todos os níveis de habilidade usufruírem de uma experiência agradável, que tanto pode ser um passeio tranquilo ou uma aventura deslumbrante.
(aqui o registo “stravico” da jornada)

No terceiro dia da nossa jornada, com o bacalhau do Maria Rita bem digerido mas com a mousse de chocolate com azeite ainda no pensamento, arrumadas as trouxas fizemo-nos à estrada e retomamos o troço de Ecopista que ainda faltava percorrer, de Romeu para Mirandela. Antes disso, o Couto levou-me a um dos pontos altos da, também conhecida como, aldeia das rosas: o Santuário de Nossa Senhora de Jerusalém, pequena capela rodeada de olivais e que fica bem no alto, de onde se pode desfrutar de uma paisagem sublime.


A história de Jerusalém do Romeu está intimamente ligada à história da família Menéres, ao fundador e descendentes que aqui investiram na agricultura e criaram postos de trabalho e condições à fixação dos seus trabalhadores e famílias. O fundador Clemente Menéres foi também o grande impulsionador da construção do caminho de ferro, principalmente para o escoamento da cortiça. Velho edifícios, como a antiga escola primária, os armazéns da Quinta do Romeu e a abandonada estação de comboios, são construções que resistiram ao tempo e preservam o passado. Outro local de muita e surpreendente história, que juntamente com o Restaurante Maria Rita atraia visitantes, era o Museu das Curiosidades, que duplamente tive a oportunidade de visitar mas que infelizmente foi encerrado.

Passada a antiga passagem de nível, onde se atravessa a EN15, uns metros mais à frente, temos a primeira interrupção na progressão pela Ecopista. A antiga ponte ferroviária de Jerusalém do Romeu ainda não foi restaurada, fazendo com que para se retomar a pista da outra banda do vale, o cicloturista ter de fazer um pequeno desvio, primeiro com uma suave descida, para, posteriormente, enfrentar a correspondente e exigente subida.


A partir deste ponto da Ecopista, a paisagem muda radicalmente, fazendo com o que o ciclista cruze terrenos agrícolas e vinhedos. O trilho segue ao lado da estrada nacional até que, após passar ao lado da povoação de Vale de Lerda, volta a ver interrompida a passagem por outra ponte ferroviária com a data de restauro em suspenso. Novo desvio e novo cruzamento numa desactivada passagem de nível, a Ecopista da extinta Linha do Tua segue agora a EN15 pela berma esquerda até ao cruzamento/rotunda para Carvalhais. A partir deste ponto para se entrar em Mirandela o ciclista poderá recorrer às faixas cicláveis desenhadas no asfalto, enquanto pode ir observando o troço agora abandonado do antigo Metro de Mirandela até à estação de comboios no centro da cidade.


Preparados para forrar os estômagos com o tradicional rancho à transmontana, com os bilhetes comprados para o autocarro das 18 e tal, fomos de barriga cheia fazer uma sesta para a relva refrescante da praia fluvial de Mirandela. Entretanto, e na incerteza quanto às exigências de transporte de bicicletas pelas transportadoras rodoviárias diz respeito, fizemos uma tourné ciclística pela cidade, visitando lojas dos chineses à procura dos maiores sacos de lixo do mercado. À hora marcada, na estação rodoviária, chegava o autocarro da FlixBus proveniente de Bragança e com destino ao Porto, abordamos o simpático motorista que, exibindo a sua proeminente barriguita, nos convidou a colocar as bicicletas sem requisitos no porão do autocarro. Depois disse-nos que também ele, em tempos, havia pedalado bicicletas!

(aqui o registo “stravico” da jornada)
Obrigado pelo convite amigo Couto. Venha a proxima aventura.






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