“Se se reconhecerem nela ajudem a divulgar por email ou nas redes sociais. Obrigado.”
MUBi – Associação pela Mobilidade Urbana em Bicicleta
http://mubi.pt
Fundada em 2009
Apartado 2558, EC Praça do Município, 1114-001 Lisboa
NIPC: 509 005 489
“Exmo. Sr. Dr. Jorge Jacob,
Presidente da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária,
No mesmo dia em que a Prevenção Rodoviária Portuguesa publicou um estudo em que demonstra claramente onde reside o problema para a segurança rodoviária em Portugal, ou seja, no número elevado de automóveis em velocidades excessivas; a ANSR iniciou uma campanha para “uma Responsabilidade Partilhada” no convívio rodoviário, que, segundo V. Exa., pretende informar os ciclistas sobre as alterações ao Código da Estrada, Lei n.º 72/2013 de 3 de setembro, que entrou em vigor no dia 1 de janeiro do presente ano.
Abaixo explicamos porque a “responsabilidade partilhada” é um conceito errado na abordagem ao problema da sinistralidade rodoviária entre veículos motorizados e utentes vulneráveis. Observamos também que a ANSR continua a realizar campanhas que retratam as formas de deslocações ativas como perigosas (neste caso, com vídeos retratando sinistros com consequências graves), o que desencoraja as pessoas de utilizarem essas formas de deslocação. Dito isto, gostaríamos de congratular V. Exa. por finalmente se dirigir, mesmo que parcialmente, aos condutores dos veículos com maior velocidade, com mais massa e consequentemente com maior probabilidade de provocar danos, mortos e ferimentos graves.
1. A Responsabilidade Partilhada
O slogan escolhido para um dos vídeos – sempre que alguém arrisca quem sofre é o ciclista – leva-nos a questionar se o conceito de co-responsabilização é a forma correta de abordar a segurança entre um modo de transporte inerentemente perigoso e outro que tem e deve ter acesso universal. Relembramos que o ciclista, tal como o peão, pode naturalmente ser uma criança ou um idoso, sem a necessidade de uma licença de condução. O próprio conceito de “Responsabilidade Partilhada” contradiz o espírito e a letra da revisão do novo Código da Estrada na definição de “Utilizador Vulnerável”. É um conceito felizmente ultrapassado na maior parte da legislação europeia e que contraria até a Diretiva 2009/103/CE do Parlamento Europeu e do Conselho. Nenhuma campanha de proteção dos utentes vulneráveis verdadeiramente eficaz se poderá basear neste princípio.
2. Campanhas que desencorajam o uso da bicicleta através do medo
Gostaríamos de realçar que a bicicleta é um meio de transporte com vantagens económicas (1/5 das importações de Portugal são carros e combustíveis), ambientais (poluição atmosférica, GEE, e poluição sonora), sociais (sendo pouco onerosa, políticas que incentivem o seu uso, tornam o acesso à mobilidade muito mais igualitário para todos os estratos da sociedade), de saúde (a maior causa de morte em Portugal são as doenças cardiovasculares, onde um grande fator de risco é o sedentarismo) e de segurança (todos os estudos indicam que quanto maior o número de ciclistas nas estradas, menor o risco rodoviário para todos). Por isso, as boas práticas europeias recomendam que devem ser evitadas a todo custo campanhas que retratem a bicicleta como um modo de transporte perigoso e a evitar. A ANSR, ao insistir no mito generalizado de que a bicicleta é um modo de transporte perigoso, não está, no nosso entender, a prestar um serviço de interesse público.
Um dos vídeos da campanha sugere-nos ainda os seguintes comentários:
3. Erro crasso na imagem final
Existe um erro de concepção gráfica que afeta a forma como se efetua a sua perceção, mostrando-se deficiente a legibilidade da imagem constituída pela justaposição e associação de pictogramas representando o momento da ultrapassagem a 1,5 metros de distância. No vídeo que tenta transmitir uma ideia correta sobre a distância de ultrapassagem de 1,5 m (o vídeo com a situação de atropelamento de uma criança) um dos pontos-chave é a fase final do anúncio, em que se tenta elucidar visualmente a nova regra de ultrapassagem a velocípedes. No entanto, constatamos que a imagem usada nessa fase final sofre de um erro grave. Poucos condutores têm uma noção exata do que 1,5 m realmente significam, sendo por isso muito relevante que a figura ilustre graficamente o que essa distância implica em proporção com as figuras do velocípede e do carro. Sendo uma aproximação, a figura deverá sempre mostrar um caso exagerado (carro a mais de 1,5 m do velocípede), nunca o caso oposto (carro a menos de 1,5 m).
Sabendo-se que um ciclista de altura mediana montado numa bicicleta de adulto se torna na generalidade mais alto que um automóvel convencional, nessa situação, a altura do ciclista rondará 1.5 m. Logo, o afastamento no pictograma entre o automóvel e o ciclista, nunca deverá situar-se a menor distância daquela que representa a altura do referido ciclista. Infelizmente, é esse o caso que transparece da figura que surge no final do vídeo.
O carro na figura está a efetuar uma ultrapassagem demasiado próxima do velocípede. De facto, a ilustração representa uma situação perigosa e ilegal, representando uma situação em que o carro ultrapassa a menos de metade da distância lateral que a nova lei exige!
Imagem usada pela campanha da ANSR.
Medindo, na figura, a altura do carro e a distância ao carro – extremo do guiador do velocípede, e assumindo um carro ligeiro de 1,5 m de altura (o que é mais alto que muitos modelos de carros ligeiros), conclui-se que o carro ilustrado está a efetuar o que vulgarmente se denomina por “razia”.
Ilustração correta da distância de segurança.
É um erro crucial que limitará consideravelmente a eficácia da mensagem do vídeo.Consideramos fundamental que o erro seja corrigido, antes da divulgação do vídeo nos media.
4. Lacunas do vídeo relativamente às prescrições legais a cumprir na ultrapassagem de ciclistas por parte de veículos motorizados.
Existem duas lacunas importantes na forma como se aborda a ultrapassagem do velocípede. A nova regra sobre ultrapassagens a velocípedes não se limita a impor a distância lateral de pelo menos 1,5 m. A nova regra introduz também duas novidades que são tão ou mais importantes que a distância minima de segurança:
- a necessidade de abrandar antes de ultrapassar um velocípede.
caso haja via adjacente, - a necessidade de ocupar a via adjacente para ultrapassar.
Não se entende porque razão é que um vídeo cujo objetivo é promover ultrapassagens seguras no espírito da nova regra se foca apenas num dos aspectos (1,5 m) e deixa de fora os restantes aspetos que o novo Código da Estrada integra, e que são tão ou mais importantes do que a distância mínima de segurança. Chamamos a atenção para o facto da obrigatoriedade, na maior parte dos casos, de ocupação a via adjacente por parte dos veículos motorizados, tornar extremamente fácil aferir por todos (inclusivamente as autoridades policiais) que a ultrapassagem está a ser ou foi realizada em segurança, e de acordo com as novas regras do Código da Estrada.
Sobre a Ficha Temática
Congratulamos V. Exa. pela publicação da Ficha Temática, que pela primeira vez faz uma compilação dos poucos dados que existem sobre sinistralidade com ciclistas em Portugal. Alertamos para três aspetos importantes:
- É fundamental não confundir os números absolutos de acidentes e vítimas com a noção de risco. A Ficha Temática só analisa valores absolutos de sinistros e vítimas e nunca aborda as questões de risco e perigo rodoviário e isto deveria ser mais explícito e corrigido em futuras edições. Risco é a probabilidade que um utilizador de um modo de transporte tem de estar exposto ao risco de ter um sinistro. O risco dos utilizadores deve ser medido tendo em conta alguma forma de exposição ao risco (geralmente o número de quilómetros percorridos). Desta forma, seria fácil verificar aquilo que é normal acontecer: quanto maior o número de ciclistas e maior o número de quilómetros realizados de bicicleta e a pé menor é o risco para todos (“segurança pelos números”). Por isso, mesmo numa situação em que haja um aumento do número absoluto dos sinistros com ciclistas, podemos estar provavelmente perante um benefício social e não necessariamente perante um problema.
Segurança pelos Números
Relação y:ciclistas mortos por 100 milhões de km / x:km pedalados por pessoa-dia
By Wittink, Roelof, I-ce Interface for Cycling Expertise:
Planning for cycling supports road safety.ISBN 1855736144Este gráfico, publicado pela ANSR, é enganador e simplista, não revelando de todo o risco dos utilizadores de bicicleta. Num caso hipotético extremo, se em Portugal não existissem ciclistas, de acordo com o exposto neste gráfico o país teria 0% de sinistralidade. Na realidade, a Holanda, é o país da Europa onde o risco para um utilizador de bicicleta é menor, tendo níveis gerais de sinistralidade rodoviária substancialmente menores que Portugal, revelando mais uma vez quão falacioso e simplista é esta abordagem.
- A utilização da palavra “acidente” deverá deixar de ser usada em documentos oficiais da ANSR. É incompreensível, que no século XXI, continuemos a utilizar terminologia datada e que prejudica a mitigação do problema. Com efeito não existem acontecimentos acidentais ou imprevisíveis, mas uma conjugação de condições desfavoráveis ou acumulação de falhas, humanas ou materiais, que levam a determinada consequência ou conjunto de consequências. A Organização Mundial de Saúde (OMS) e inúmeros organismos oficiais noutros países criticam o uso deste termo e muitas delas abandonaram mesmo o seu uso.
- A ficha temática aconselha a segregação da bicicleta como a prioridade principal para a sua segurança; inclusive acima da redução da velocidade e da redução do número de veículos motores em centros urbanos. Esta inversão de prioridades contradiz as boas práticas nacionais e internacionais (consultar a “Hierarquia de Decisão” preconizada em vários manuais técnicos sobre o assunto que colocam a provisão de infraestruturas como última prioridade).
Em conclusão
Continuamos extremamente preocupados com os níveis inaceitáveis de sinistralidade rodoviária envolvendo utilizadores vulneráveis no nosso país, bem como com o medo que afasta as pessoas de se deslocarem de bicicleta ou a pé. Apelamos por isso a V. Exa. para que reveja e que atualize a abordagem que a ANSR tem tido em relação à segurança dos mais vulneráveis, aderindo aos princípios e boas práticas europeias nesta matéria:
- Abandone o princípio da responsabilidade partilhada.
- Evite a todo o custo campanhas e material pedagógico que inspire medo na utilização da bicicleta ou andar a pé.
- Foque o seu esforço na consciencialização, de forma a incutir um efetivo sentimento de proteção dos mais frágeis, nomeadamente dos seus direitos mais elementares de cidadania, responsabilizando os condutores de automóveis a favor da segurança dos utilizadores mais vulneráveis.
- Invista na informação aos automobilistas, sobre as suas responsabilidades, obrigações éticas e morais e ainda sobre cuidados acrescidos que estes têm que ter com os utilizadores mais vulneráveis.
- Caso produza material pedagógico para os motoristas, que tenha em maior atenção os ciclistas, que consulte as associações de utilizadores que de facto têm experiência dos problemas mais frequentes e indague sobre quais as melhores estratégias de condução defensiva legalizadas pelo atual CE (nomeadamente a ocupação assertiva da via devidamente afastado da berma e a condução a par).
- Reveja os materiais com o devido cuidado e promovendo as convenientes consultas antes de os tornar públicos.
A MUBi continua totalmente disponível para colaborar com a ANSR, para que esta possa contribuir de facto para a melhoria da segurança dos mais vulneráveis em Portugal.
Com os nossos melhores cumprimentos,
A direção da MUBi.”
Reblogged this on Matemática em Sobral and commented:
Associação pela Mobilidade Urbana em Bicicleta
http://mubi.pt é a mobilidade urbana correta: limpa, sustentável, promove a saúde, oferece menores riscos para todos.
GostarGostar
Pingback: As mudanças no código da estrada de Portugal e os ciclistas | Matemática em Sobral
Pingback: As mudanças no código da estrada de Portugal e os ciclistas | Matemática em Sobral