Retirado do blogue vadebici.wordpress.com
“Milton Costa, Revista Alterosa (“Páginas Escolhidas”), Dezembro de 1960
Sempre que a encontro pela manhã, encostada à parede, cuido descobrir-lhe uma expressão de tristeza no guidão descaído. Examino-lhe os pneus, ponho as presilhas e saio. O selim, agora tão velho e apodrecido pelas chuvas e pelos sóis, faz-me pensar, amiúde, em um sapo amassado. Não há manápulas. A catraca estala na corrente, entre as conexões substituídas e os elos gastos. O eixo da frente geme nas esferas. Está velha, muito velha, a minha bicicleta.
Quando a comprei, contudo, não sabia que iria servir-me tanto. De madrugada, durante o dia ou à noite, ela está sempre à minha espera, ora semi-tombada numa sarjeta, ora apoiada num poste. Gemendo e estalando, subindo ou descendo, leva-me, paciente, pelas artérias movimentadas.
Sempre tive pena dela, como tenho pena dos pobres. Na interminável hierarquia dos veículos, uma bicicleta representa a classe menos favorecida. É a plebéia do trânsito. Tem que ir constantemente junto aos meios-fios, como quem pede esmolas nas portas das casas. É perigoso dar uma guinada à esquerda; o cadilaque luxuoso que vem atrás não a respeita e não a vê. Precisa vigiar duplamente os transeuntes, que lhe passam à frente sem receio, pois ela é pequena e leve – alguns canos, duas rodas, um selim. Várias vêzes, num só quarteirão, tem que deter sua marcha, aqui para evitar a criança que atravessa calmamente a rua, ali para não ser esmagada na sarjeta pelo Mercedes Benz que lhe fecha a dianteira sem cerimônia, acolá para não ferir o cão que a persegue latindo e mordendo-lhe os pedais.
Minha bicicleta, agora, tem biografia e experiência. Pode contar muitas histórias às bicicletas neófitas que andam aèreamente pelas ruas, como baratas tontas, como meninos pobres que não temem os ricos, menosprezando os grandes ônibus e os enormes caminhões, confiando mais nos freios alheios do que na sua própria perícia.
Fala-se, no entanto, em regras de trânsito. Mão e contra-mão. Preferenciais. Sinais semafóricos. Pura ingenuidade: uma bicicleta pode ir pela direita, que mesmo assim estará sempre contra a mão. Não há, para ela, vias preferenciais. E, conquanto os semáforos indiquem verde ou amarelo, ela pode continuar esperando que os carros passem primeiro, pois a sua côr é sempre de perigo, vermelha, vermelha, bem vermelha. As bicicletas novatas obedecem aos sinais luminosos das esquinas, mas a minha é velha e já sabe “não distinguir” as côres; é a prudência daltônica peculiar às bicicletas anciãs.
Muitas vêzes, muitas vêzes mesmo, a plebéia percebe que o FNM vem contra a mão, vem em cima dela, vai parar à porta de algum armazém para descarregar, pois de fato é muito trabalhoso, para um caminhão tão grande, fazer um “balão” na esquina próxima. Não há, então, saída para ela, senão a calçada. Ir para a frente, para o suicídio? Desviar para a esquerda? Parar? Pode bem ser que venha, atrás dela, no momento, um coletivo monstruoso. Escondida pelo FNM, prestes a surgir, é capaz de estar uma “perua” traiçoeira. Neste ínterim, enquanto a bicicleta se debate em dúvidas, o motorista do FNM, refestelado na boléia, sossegado como um animal bem alimentado, livre de riscos e incertezas, contempla o mundo com otimismo e pachôrra, como um burguês fazendo a sesta na varanda envidraçada de sua casa.
Minha bicicleta sabe que tem que se acautelar contra tudo e contra todos. Ninguém a acata. Ninguém lhe foge. Pesados veículos e fogosos semoventes passar-lhe-iam em cima se ela não saísse da frente. As motocicletas lançam-lhe insultos e ameaças no ronco dos motores. Lambretas sussuram presunções. Tudo e todos parecem querer seu fim. Um buraco na rua pode quebrar-lhe raios ou entortar-lhe um aro. Se, para seu dono conversar com alguém, ela está na calçada, os guardas a enxotam, furibundos, alegando que ela atrapalha os pedestres. Na rua, perturba o trânsito, a velocidade dos esganados de riqueza ou dos “play-boys”, a pressa das ambulâncias e da rádio-patrulha. Por que, afinal, inventaram as bicicletas?
Apesar de tudo, gosto de minha bicicleta. Velha e frágil, gemendo ou estalando, é um veículo individual e me permite, não obstante todos os impecilhos, estar comigo mesmo, sòzinho com as minhas saudades e as minhas esperanças. Posso estar sòzinho, sim, que ninguém quer ir sentado no cano, quase todos têm mêdo de cair de costas na rua…
Na grande árvore genealógica dos veículos, entre os automóveis de alta linhagem e os carros de anilina nobreza e linhas aerodinâmicas, a bicicleta é a plebéia, a plebéia do trânsito. Há, para elas, luzes vermelhas em todos os cantos, mas subsiste, conduzindo os operários ou os escolares, como uma engrenagem indispensável do progresso.”