textos de Marcos Paulo Schlickmann [16] Bicicletas não são automóveis. Ou a não-solução para Milton Keynes.

O conceito de segregação de tráfego é aplicado quando se deseja separar vários meios de transporte com velocidades, dimensões, volumes de tráfego, prioridades e níveis de segurança e risco (muito) diferentes. Apesar de ser uma prática já antiga, datada desde a época da expansão das ferrovias, segregar fluxos era pouco comum nas cidades. Era uma prática rural, que basicamente se resumia a um par de cancelas, avisos sonoros e aquela conhecida sinalização de segurança: Pare, Escute e Olhe! Passagem do comboio/trem!

Porém com o advento maciço do automóvel nas cidades e com suas velocidades absurdas que facilmente podem matar, os engenheiros de tráfego perceberam que a segregação espacial teria de vir para as cidades. Foi o que aconteceu: as ruas deixaram de ser lugares de convívio público e passaram a ser corredores de segregação de tráfego. Afinal desde pequenos nós ouvimos: Atenção, olhe para os dois lados, a rua é perigosa!

Foi o automóvel que trouxe o conceito de segregação para a cidade e este conceito foi largamente empregado nos desenhos das cidades durante o século XX.

Figura 1 - São Paulo antes do automóvel. Fonte: http://cafehistoria.ning.com/photo/largo-da-se-sp?context=user

Figura 1 – São Paulo antes do automóvel. Fonte: http://cafehistoria.ning.com/photo/largo-da-se-sp?context=user

Depois da segunda guerra mundial e com o crescente aumento populacional nos principais centros urbanos britânicos, o Reino Unido instaurou o programa New Towns1, um programa de desenvolvimento de cidades plane(j)adas de pequena e média dimensão no interior. Dentre essas várias cidades uma delas foi Milton Keynes2.

Milton Keynes se formou da junção de várias vilas e aldeias a noroeste de Londres e foi desenhada sobre aquele antigo tecido semirrural com soluções muito arrojadas: Rede viária tipo Grid (grelha), avenidas superdimensionadas e com elevado limite de velocidade e forte segregação espacial dos usos do solo (habitação em X, comércio em Y, serviços em Z). Semelhante à Brasília, Milton Keynes é uma cidade “quase corbusiana” que coloca o automóvel como rei. Porém, os pedestres e os ciclistas não foram esquecidos na última. Ou foram?

2 - Uma rotunda/rotatória típica de Milton Keynes. Reparem no tamanho da volta que o ciclista/pedestre precisa dar! (Via pedonal e ciclável partilhada em verde) Fonte: GoogleMaps

Figura 2 – Uma rotunda/rotatória típica de Milton Keynes. Reparem no tamanho da volta que o ciclista/pedestre precisa dar! (Via pedonal e ciclável partilhada em verde) Fonte: GoogleMaps

Figura 3 – Outra, desta vez com passagens superiores! (Via pedonal e ciclável partilhada em verde)  Fonte: GoogleMaps

Figura 3 – Outra, desta vez com passagens superiores! (Via pedonal e ciclável partilhada em verde)
Fonte: GoogleMaps

Apesar de ter uma rede de vias segregadas exclusiva para uso pedonal e ciclável de 200km de extensão, conhecidas como Redways3, Milton Keynes apresenta uma repartição modal inesperada. Comparada4 com a média britânica (2001) de 2,9% de repartição modal para bicicletas, Milton Keynes só apresenta 3,0%. E os dados para 2009 não são muito melhores.

Tabela

Tabela 1 – Repartição modal (%) de Milton Keynes. Fonte: http://www.epomm.eu/tems/index.phtml

Mas o que deu errado? Não era suposto haver mais gente a se deslocar de bicicleta para o trabalho, escola, etc.? Quando se plantam ciclovias não deveria se colher ciclistas5? Quando projetaram as Redways em 19716 os responsáveis disseram:

“Redways servirão para mostrar, pela primeira vez em uma escala da cidade, como as viagens para pedestres e ciclistas podem ser feitas de modo conveniente, seguro e agradável e, sobretudo, para reduzir acidentes envolvendo pedestre, ciclistas e especialmente crianças.”

Só esta afirmação já mostra que isso não iria dar certo e que quem projetou as Redways de certeza não era nem pedestre nem ciclista urbano. Vou escrever o motivo em letras garrafais:

PEDESTRES E CICLISTAS TÊM NECESSIDADES DIFERENTES!

Há uma teimosia generalizada por parte dos decisores públicos em meter pedestres e ciclistas juntos no mesmo saco. Esta atitude mostra claramente:

  1. A falta de vontade de fazer as coisas corretas;
  2. O despeito pelos modos suaves e pelo dinheiro público;
  3. A vontade de criar oferta cicloviária só porque sim (para turista ver) e não por se querer realmente mais ciclistas;
  4. O verdadeiro objetivo escondido por trás desses projetos: não incomodar o deus-sagrado automóvel e a fluidez do tráfego.

E essa teimosia, que com certeza guiou o projeto de Milton Keynes, trouxe as seguintes consequências4,6,7:

  1. Fraca manutenção devido ao pouco uso e crescente contestação pública de sua utilidade não-recreativa;
  2. Rede insegura (insegurança física e pessoal), considerada mais insegura que a rede viária normal em certos trechos, muitos conflitos com pedestres, ciclistas, crianças, cães e até cavalos!
  3. Ciclistas pouco experientes com o tráfego (devido à excessiva segregação) acabam por ter atitudes irresponsáveis, criando conflitos e desincentivando os demais a pedalar;
  4. Oposição por parte dos motoristas em partilhar a rede viária normal com os ciclistas, devido à existência das Redways.

Atualmente as Redways são promovidas como infraestrutura de lazer8.

Concluindo:

  1. Devemos então integrar todos os meios e não segregar? Não. Devemos analisar onde é lógico segregar e onde não é. Em lugares com elevado volume de tráfego e altas velocidades devemos sim segregar, nas ruas locais sem dúvida que o automóvel pode conviver tranquilamente com as bicicletas.
  2. Acredito que as altas velocidades permitidas em algumas vias de Milton Keynes foram o principal motivo para criar uma rede para pedestres e ciclistas totalmente segregada.
  3. Se os projetistas e plane(j)adores urbanos e de transportes querem realmente melhorar as condições para o uso massivo da bicicleta como meio de transporte, peçam ajuda aos ciclistas que já se servem das condições atuais. Diferente dos motoristas e usuários do transporte público, os ciclistas estão sempre dispostos a colaborar com o poder público, respondendo inquéritos, fazendo contagens de tráfego, ajudando no desenho de novas infraestruturas.
  4. O ciclista e o pedestre são permeáveis, passam levemente pelo tecido urbano, não precisamos escondê-los em pontes, túneis, etc. Eles não são os causadores dos problemas., não são eles que “atrapalham o trânsito”.
  5. Porém infelizmente, passado mais de 30 anos da implantação de Milton Keynes, alguns ainda não aprenderam. Vejam esta ideia estúpida para Londres (que por acaso tem o dedo do mesmo arquiteto que participou de um projeto para Milton Keynes: Norman Foster):
    http://www.copenhagenize.com/2014/01/the-ridiculous-sky-cycle-by-norman.html.

Referências:

1. http://en.wikipedia.org/wiki/New_towns_movement

2. http://en.wikipedia.org/wiki/Milton_Keynes

3. http://en.wikipedia.org/wiki/Milton_Keynes_redway_system

4. http://aseasyasridingabike.wordpress.com/2012/04/26/they-built-it-and-they-didnt-come-the-lesson-of-milton-keynes/

5.  Nelson, A., and Allen, D. (1997). If You Build Them, Commuters Will Use Them: Association Between Bicycle Facilities and Bicycle Commuting. Transp. Res. Rec. J. Transp. Res. Board 1578, 79–83.

6. http://www.cyclecraft.co.uk/digest/2decades.html

7. http://www.cycling-embassy.org.uk/wiki/milton-keynes-cycle-network-more-dangerous-road-network

8. http://www.destinationmiltonkeynes.co.uk/What-to-do/Sports-and-Activities/Cycling-in-Milton-Keynes

 

Sobre paulofski

Na bicicleta. Aquilo que hoje é a minha realidade e um benefício extraordinário, eu só aprendi aos 6 anos, para deixar aos 18 e voltar a ela para me aventurar aos 40. Aos poucos fui conquistando a afeição das amigas do ambiente e o resto, bem, o resto é paisagem e absorver todo o prazer que as minhas bicicletas me têm proporcionado.
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apenas pedalar ao nosso ritmo.

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