uma pedrinha na engrenagem

Previ uns dias de férias para esta altura do ano, dias esses pensava eu serem primaveris… “-Oh que crente!”. Estando mesmo ao virar da página do calendário, seria de esperar tudo menos este clima típico de latitudes nórdicas, perfeito para gastar esses preciosos dias dentro de museus. Onde já se viu isto, nós aqui a bater o dente e os nórdicos a viver um verão antecipado! Assim, as pedaladas resumiram-se a umas voltinhas ao bairro, enquanto o quintal ia sendo dizimado por saraivadas e enxurradas.

Para os derradeiros dias de ócio programei a visita às minhas propriedades, num rodopianço pelo Douro. Nos planos estava nova estirada até às Mós, à terra dos meus avós, pernoitar para voltar no dia seguinte, passando pelo Lugar que tem um lugar reservado no meu coração. Isso, mais coisa menos coisa, era coisa para repetir as quatro centenas de mil metros pedalados da nossa recente volta santa. No dia previsto fiz-me à estrada acompanhando pelo mais belo rio do mundo. Não tive a companhia de nenhum dos amigos da vida airada, que se baldaram ao repto. Ainda bem, pois afinal não seria boa companhia.

Ainda a digerir o pequeno-almoço, saio de casa nas calmas. Com mais ou menos a distância do meu commute diário, cinco mil metros pedalados, algo no meu mais profundo foro íntimo estava a deixar-me desconfortável. Cedo constatei que era a demonstração prática da expressão “estar sem posição”. Ajeito a postura no selim e coloco a mão logo abaixo do bandulho.

– Que raio, esta dor agora não vinha nada a calhar. Devem ser gases! Soltem-se os prisioneiros.

A transgressão aos bons costumes consistiu em aliviar a acumulação gasosa na região abdominal através da emissão, não silenciosa mas inodora, de quatro traques.

Para que se saiba, o meu pequeno-almoço resumiu-se a um pão com manteiga, uma banana mais a habitual medicação para controlar os diabretes, tudo empurrado com um galão morninho, não descortinando neste meu rotineiro menu o vilão para o meu mal-estar.

Entretanto o desconforto diminuiu e pisei a N108, o meu tapete até à Régua. Bebo os primeiros goles de água e volta a mesma sensação estranha. Coloco a mão no abdómen e sinto a pança inchada.

– Não devia ter saído sem aliviar a tripa. Tenho de parar.

A sensação de fraqueza era enorme. Não me parece cortês abrir aqui uma luz para revelações sobre as minhas necessidades fisiológicas. Um ciclista do “World Tour” com necessidades súbitas não é nada que já não tivesse sido testemunhado “Live” pela Eurosport. Aliviei alguma carga a coberto da mata e, como experimentava ligeiras melhoras, decidi continuar a pedalada, mesmo com aquela impressão de pança dilatada. Entretanto volta a dor, ainda mais forte, agora acompanhada de náuseas. – Será que é isto que sentem as grávidas?!

Passei pela barragem e percebi que naquelas condições não iria longe. Já contava os quilómetros que faltavam até ao café mais próximo, na esperança que já estivesse aberto. Ufff… e estava! Mon Réve de Paris, assim chamado o estabelecimento comercial, sinceramente bastava-me uma retrete para realizar um sonho.

Largo a bicla no alpendre, entro de rompante com o chocalho dos cleats a bater na tijoleira e a chamar atenções sobre mim. Subo as escadas e entro no WC. Mais uns segundinhos e largava a carga ao mar ali mesmo, à frente da clientela.

Livre dos resíduos tóxicos do pequeno-almoço, chegam os arrepios e os suores frios. A dor está localizada mas não passa e convenço-me que tenho de ligar para casa. Com o pronto-socorro e a médica de família a caminho, resigno-me e considero a missão “Rodopiar o Douro” abortada, ao quilómetro 27!

Numa triagem à sintomatologia, o xôtor Google apresenta-me a suspeita número um:

– Muito prazer, eu sou a tua vesícula biliar.

A vesícula biliar está bem ali, do lado direito, atrás do fígado. É um pequeno órgão ao qual não damos muita importância até que uma pedrinha decide emperrar a engrenagem para então termos a noção que ela existe. Na dor, cada órgão vai ficando mais palpável, mais real.

Entre os problemas que podem afectar este órgão, o mais comum é a formação de pedras. Tenho observado algum histórico no meu círculo familiar e de amizades, e constato que ter pedras na vesícula não é privilégio de pessoas mais velhas. Quando este problema de saúde surge a cirurgia para a remoção da vesícula é tiro e queda. Não faz assim tanta falta e, aparentemente, vivemos bem sem ela.

Diz-me o xôtor Google que o chá de barba de milho faz muito bem às crises de vesícula! Até pode fazer, mas não havendo tal coisa em stock no Mon Réve de Paris fez-se uma infusão de cidreira que fui bebericando aos poucos para depurar o sistema. Novo sprint para o WC. Uma chatice.

Já acomodado no veículo de assistência, debruçado sob o abdómen, nenhuma inclinação no banco me dava posição para atenuar o sofrimento. Recuso a ida ao hospital, afinal ainda me restava um dia útil, de férias. Uma vez estendido na minha confortável caminha, nada me inibia de passar o tempo agarrado à campainha pedindo à enfermeira para me dar miminhos e paninhos quentes.

Após mais umas quantas chamadas do Gregório, um pouco antes da hora do lanche, finalmente sentia melhoras. Forrei o estômago com uma torrada seca e uma chávena de chá quente. A disposição já era outra, talvez porque a minha querida vesícula deu ordem de soltura à pedrinha.

Nisto as dores passaram, completamente. Depois de me certificar que me aguentava nas canetas, quando fui à casa de banho escovar os dentes, vou um pouco mais além nos desejos e só recebo olhares de reprovação depois de mais um delírio.

– Já me sinto bem melhor, acho que amanhã vai dar para ir… Ok, Ok… Eu fico!

O Homem – máquina, uma parte é a combinação complexa de órgãos e músculos, a outra é a bicicleta. Uma delas é infinitamente ajustável e adaptável, o outro é um ciclista, um ser humano. O ideal é a união perfeita entre as duas separadas entidades, actuando em harmonia e determinação, excepto a realidade que geralmente é desigual. Quando um deles falha, a pedalada não tem o efeito desejado.

“Não tropeçamos nas grandes montanhas, mas nas pequenas pedras.” Augusto Cury

Sobre paulofski

Na bicicleta. Aquilo que hoje é a minha realidade e um benefício extraordinário, eu só aprendi aos 6 anos, para deixar aos 18 e voltar a ela para me aventurar aos 40. Aos poucos fui conquistando a afeição das amigas do ambiente e o resto, bem, o resto é paisagem e absorver todo o prazer que as minhas bicicletas me têm proporcionado.
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2 respostas a uma pedrinha na engrenagem

  1. Nelson Branco diz:

    A esta hora já sei que estás pronto para outra, voltinha de bike, entenda-se!
    Essa foi aquilo a que se pode dizer: Uma volta de caca!

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  2. paulofski diz:

    foi mesmo 😬

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apenas pedalar ao nosso ritmo.