no Baixo Minho e Barroso – um empeno jeitoso

Este que aqui escreve não passa de um recém randonneurizado, que quis mais. Como a criança que é atirada ao ar pelo pai brincalhão e que apesar dos protestos da mãe para que se pare com a brincadeira adora e pede bis entre gargalhadas. Apesar de alguns incrédulos que atestavam a minha insanidade mental, a que me alarmava era a física, depois da pedalada pelo Ribatejo, depois do Alto Minho, empolgado por ter sobrevivido a uma Flèche, mesmo que incompleta, iria agora tentar completar um brevet de 314 km pelo Baixo Minho e Barroso, com qualquer coisa acima dos 5 mil metros de altimetria, de novo organizado por Via Veteris. Já sabia da altimetria, vi que era complicada, alguns trechos mais íngremes, outros menos, preferi não estudar muito, era melhor não embandeirar e levar a bicla certa.

BRM300 BMB#1Bem cedinho lá estávamos de novo, quase todos, na Delegação da Cruz Vermelha de Marinhas, Esposende, na vistoria das biclas: luzes à frente, luzes atrás, com o colete reflector, capacete… Início de aventura. O pelotão rumou a sul, pela bruma da N13, e permaneceu compacto durante muitas horas. Depois de passar Vila do Conde, fez-se a viragem na Azurara para o interior. Foi já com o sol na cara que continuamos a trilhar os tranquilos quilómetros iniciais pelo vale do Ave. Tudo ok, tudo pacífico, cada qual a pedalar no seu próprio ritmo.

BRM300 BMB#2Trofa, Santo Tirso, Lordelo, o dia que seria longo estava fantasticamente bonito e a pedalada decorria agradável. Alguns ciclistas já se conheciam, outros estabeleciam pequenas conversas. Foi ao som das nove badaladas, à passagem dos 70km, que entramos em Vizela, para o segundo posto de controlo na Pastelaria Fina. Tempo de carimbar o brevet, descansar as pernas e afinar o mecanismo com um docinho da terra. O ímpeto inicial é pedalar com força, até se sentirem os músculos das coxas e aumentar a média, mas num brevet fazer isso é burrice. Os músculos irão arder, estejamos certos disso, mas é preferível poupar forças e deixá-los arder só no final. A distância é longa, de nada serve forçar para depois sofrer e não aguentar.

BRM300 BMB#9Logo à saída de Vizela o primeiro empedrado do dia, que haveriam de ser vários, e longos, e aborrecidos. Para minimizar a trepidação, a melhor forma é passar o mais rápido possível pelos paralelepípedos. Foi num desses pavés rurais que tive a companhia inusitada de um canito, que me fez dar o maior sprint da viagem por uns bons cem metros. O jeco (cão vadio) apareceu do meio do nada, a ladrar e com a dentuça à mostra, numa correria ensandecida a meu lado. Entabulei uma conversa com ele mas não arrisquei levar a mão ao bolso para lhe tirar a fotografia. Acabou por se cansar e lá desistiu. Durante a pedalada a fauna que se cruzou à frente da minha roda foi variada e até uma galinha esganiçada se meteu no meu caminho. As aventuras estavam ainda no começo.

BRM300 BMB#3Já dava para notar que aquilo não seria um passeio no parque. O calor já apertava e, bora lá fazer um strip-tease à beira da estrada. Seguiu-se a primeira escalada a sério, passando por Fafe até à Lameira, sempre com a companhia do Tiago. Impulsionados pela fantástica paisagem, passamos por ruas com nomes insólitos, como a rua “Pica de Além” e logo a seguir a “do Rego”! Mas a brincadeira foi ficando progressivamente mais suada, até ao cume, onde paramos para celebrar os 100km com uma golada de água. As sensações eram boas. Um terço estava feito. Depois de algum tempo a petiscar e dar a tradicional mirada no road book, de novo alapados no selim seguimos adiante, descendo agora para Arco de Baúlhe.

BRM300 BMB#4A senhora da Padaria Central tinha bonita freguesia, tinha o carimbo mas não tinha sopa! “Se me tivessem avisado…!”. Tal era a fome que precisava de um almoço digno antes do Everest. À segunda tentativa acabamos por encontrar um restaurante onde ataquei ferozmente duas sopas, boroa e uma fresca salada de frutas. Nutridos e hidratados entramos naquela coisa de estrada em direcção a Cabeceiras de Basto para alguns quilómetros à frente começar a subida, pedalando o mais lento e cadenciadamente possível. Resumindo, veio a ser um empeno para lá de jeitoso.

BRM300 BMB#5Se no início das hostilidades, até ao Salto, lá bem no alto a mais de 1000 metros de altitude, éramos três, depois ficamos dois, para mais tarde o Tiago acelerar e desaparecer de vista. Tive de me safar sozinho. Nos brevet’s não há competição, apenas se chega dentro do tempo, ou não. Sente-se a aspereza do asfalto como se caminhássemos descalços, sente-se o relevo das estradas como nenhum automobilista poderá sentir. Amaldiçoamos e praguejamos contra quem delineou o percurso, mas vamos em frente. O único oponente a ser vencido é o nosso pensamento. Os pensamentos é que voavam. Absorvido neles, e no meu mundo novo, a serra Barrosã, nem vi as horas passarem. Tudo muito bonito por ali e em toda parte uma tranquilidade bucólica. Montes, vales, o verde, o azul e o castanho. Aquela imensa quantidade de água. Poucos foram os momentos em que não margeamos algum tipo de rio ou canal artificial. Para além do som líquido das ribeiras, do chilreio musical das andorinhas e do latido ameaçador dos cães, era tudo tão calmo como se as pessoas ali não precisassem de trabalhar, mas apenas pescassem, cuidassem do seu gado, das hortas e, no mínimo, dormissem a sesta.

BRM300 BMB#15Lembretes dolorosos da minha infinita inferioridade velocipédica não demoraram a aparecer. O primeiro, evidente, era o próprio ritmo, muito longe de ser uma maravilha. Depois foram as minhas costas que resolveram protestar. Eu, para me poupar, fui pedalando bem mais sossegado e dando folga à perna direita, à custa de um tendão distorcido. Se pedalar sozinho pelo Portugal profundo já é bom, pedalar com alguém para cavaquear, partilhar sensações e decidir junto o que fazer, é ainda melhor. Vi que o Manuel Miranda e o Gilberto iam surgindo a cada curva, esperei e com eles formei um grupeto. Percebo que se julgue serem as subidas o que pior pode haver para o ciclista, o calor e o vento também podem ser extenuantes, mas há momentos em que um companheiro à nossa frente, ao nosso lado, nos ajuda a dar força aos pedais.

BRM300 BMB#6O José Ferreira, um dos organizadores locais, que desta vez era o responsável pelo temido carro-vassoura (a recolher os restos mortais dos ciclistas que abandonam o brevet), registava a nossa passagem pelo topo da montanha no cartão fotográfico. Depois de uma agradável descida e resultante subida, já no posto de controle seguinte, num hotel em Carreira da Lebre, Alto do Rabagão, e ainda mal refeitos da escalada, fomos surpreendidos por um grupo de animados convivas que, à saída de um regado repasto, nos dedicou um vira minhoto. Naquela altura, precisamente a meio do campeonato, o corpo pedia proteína e estavam abertas as hostilidades. Só que o meu estômago não vinha preparado para atacar aquela travessa de carne barrosã, grelhada com batatas a murro, e consolei-me com uma tigelinha de sopa. Nisto chega a Ângela, acompanhada pelo grande Jacinto, e que não se fazendo rogada e ingeriu à colherada uma taça cheia de arroz de feijão.

BRM300 BMB#8  BRM300 BMB#12

Superada a grande dificuldade da etapa, simplesmente pedalamos, pedalamos, pedalamos… contornando a barragem do Alto Rabagão. A Natureza resolveu gozar com panorama e reservou para aquelas paragens uns falsos planos e uns altos-e-baixos bem pronunciados. Vinte quilómetros depois, em S. Vicente da Chã, outro posto de controlo onde se aproveitou para reabastecer as barrigas e vestir os agasalhos, pois a partir dali seriam bem longas e pronunciadas as descidas que teríamos pela frente. Eram boas novas para as nossas pernas, apenas afrouxando nas ladeiras ou para registar o momento numa fotografia. Foi ao longo do lago da Barragem da Caniçada que admiramos um lindo por do sol para além do Gerês. Eu estava a voar.

BRM300 BMB#11Geringonça inteligente, das maravilhas modernas, é o tal de GPS. Parece que é a resposta final para a grande questão filosófica humana “de onde viemos?”, “para onde vamos?” Na luz de crepúsculo, àquelas horas de pedalada, chegamos à avisada, pronunciada e perigosa descida para a albufeira da Caniçada. A coisa era quase mística e mesmo com o tal aparelhosinho falhamos o desvio e acabamos desorientados! Dando conta do engano, encontrei um senhor um pouco à frente e o interpelei. O castigo foi ter de subir algumas centenas de metros que antes havíamos gostado de descer, e assim perdemos bom e precioso tempo às voltas com a nossa cartografia internética.

BRM300 BMB#10Depois de uma paragem técnica para ligar os holofotes nos permitimos ao luxo de parar num café para voltar a enganar os estômagos. Só o facto de ver na têvê o Lucho aumentar o score do meu FêCêPê ao marcar um penalti (não, não foi um sonho), talvez por isso, me empolguei e a pedalada até Santa Maria do Bouro fez-se com mais satisfação. A chegada à Pousada da Juventude foi tremida. Malditos paralelos! Última paragem para carimbar o cartãozinho. Depois de sapatearmos por uns degraus de granito, nem os belos olhos da menina, nem a convidativa chaise longue da recepção nos fizeram sonhar com outra coisa senão voltar à estrada.

BRM300 BMB#13A partir daí a estrada foi ficando mais concorrida. Festa da Família em Amares, não demorou muito para começarmos a ser buzinados. Não que estivéssemos a atrapalhar o trânsito, nem nada. Era uma área movimentada, de gente já bastante animada. No limite das forças, pedalamos forte na última hora, em torno dos 30 Km/h, até que quase à hora de cantar o galo, cruzamos Barcelos. O frio fazia-se sentir à medida que nos aproximávamos de Esposende e autorizamos a fuga do Gilberto “para se aquecer”! Delegação da Cruz Vermelha de Marinhas à vista, mais um BRM completo. Mais de 18 horas a pedalar. Fizemos valer cada segundo, cada metro de estrada. No fim das contas, é claro que deixamos de ver muita coisa que naquela imensidão merecia tempo para ser vista, mas tudo o que vi foi, de qualquer maneira, imperdível.

BRM300 BMB#14Pedalar longas distâncias, por montes e vales, tem muito de zen, muito de suor, muito de desvario. Quase não dá para explicar. Contribuiu para essa sensação não só o facto de se alcançar o cocuruto do roteiro, mas o privilégio de estar ali, numa região belíssima, no meio de vales e rios, pontes, terras verdes pontilhadas de animais, de muitas tonalidades e cheiros. A certa altura do caminho, mesmo lá no topo da montanha, todo o sofrimento desaparece e uma sensação de quase euforia nos trespassa o corpo. A fronteira entre a bicicleta e o nosso corpo é a nossa mente, pois a bicicleta torna-se parte integrante de nós, é a extensão do corpo, reage a cada movimento. Talvez por tudo isso, me empolguei e comecei a arrasar a estrada, não respeitando mais subida nenhuma, galgando com fúria tudo o que me aparecia pela frente. Sem alguma racionalização anterior, pedalar tem que ser natural, tão natural como caminhar, e continuar zen para o poder repetir.

BRM300 BMB#7Agora vou gozar duas semaninhas de férias e sarar as feridas de um estúpio trambolhão. Os meus amigos randonneiros terão nova aventura velocipédica já no final do mês. Será o Alqueva 400, uma bela estirada por planaltos alentejanos. Estarei com eles. Força rapazes.

Sobre paulofski

Na bicicleta. Aquilo que hoje é a minha realidade e um benefício extraordinário, eu só aprendi aos 6 anos, para deixar aos 18 e voltar a ela para me aventurar aos 40. Aos poucos fui conquistando a afeição das amigas do ambiente e o resto, bem, o resto é paisagem e absorver todo o prazer que as minhas bicicletas me têm proporcionado.
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10 respostas a no Baixo Minho e Barroso – um empeno jeitoso

  1. André Carvalho diz:

    Bela descrição, obrigado.
    Parabéns e força para a próxima!
    Uma pergunta: nestas longas distâncias, deve-se parar muitas vezes? ou pedalar mais suavemente?

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  2. paulofski diz:

    Ambas. Os brevets têm um tempo limite definido entre postos de controle (PC) para uma média mínima de 15 km/h. Devemos cumprir os tempos entre PC’s, como tal devemos controlar a nossa média e o tempo, ou o número de vezes, que paramos. Não se deve parar muitas vezes mas aquelas que achamos necessárias, tendo sempre atenção na demora em cada uma dessas paragens.

    Obrigado pelo comentário André.

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  3. André Carvalho diz:

    Eu sabia das médias e os PC, o que eu queria saber é a tua opinião sobre o parar muitas vezes, se o corpo não recupera/se pode ser pior parar do que ir mais devagar em vez de parar muitas vezes? (não me refiro às paragens obrigatórias dos PC).

    Pergunto isto porque nas “grandes” distâncias que fiz (até 100Km) parei de 25 em 25 Km, e às vezes parece que ao voltar à carga estou com menos pedalada (literalmente) do que se tivesse contiuado a pedalar mas mais devagar. Sei que uma paragem ajuda aos músculos a recuperar, mas será que 25km é pouco? ou muito? (tantas dúvidas…)

    Além disso a alimentação, numa viagem de >300Km deve-se comer bem (comida a sério) ou as sopas como descreveste são suficientes? ou um misto?

    (desculpa esta enchente de perguntas, mas tenho acompanhado os teus relatos desde os primeiros Randonneurs que fizeste (desde há dois anos acho eu), e tens experiência e bom “paleio” para descrever a tua opinão 🙂

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  4. paulofski diz:

    Sendo assim aqui vão as minhas dicas.

    Antes de mais devemos preparar a grande pedalada com antecedência. Não deixes de te alimentar bem antes da prova. No jantar de véspera não entupir de proteínas mas de hidratos de carbono (massa, pão), dormir cedo e, ao acordar, fazer um pequeno-almoço reforçado. Para além das barras de cereais, levar nos bolsos do jersey uma ou duas bananas e alguns frutos secos. Não esquecer levar pelo menos duas garrafas de água na bicla.

    Parar em demasia não é o mais adequado. Se em 100km parar a cada 25km não fará mal certamente, mas sempre que paramos o corpo relaxa e depois no recomeço a pedalada custa muito mais a retomar o ritmo. O melhor é manter uma pedalada moderada, procurar descansar em cima da bicicleta, nas descidas por exemplo, aproveitando para fazer recuperação muscular com alongamentos às pernas, aos braços e ombros. Em cima da bicicleta devemos procurar fazer uma alimentação rápida comendo barras de cereais, fruta (bananas), e hidratar muito.
    As paragens obrigatórias nos PC’s são o momento ideal para fazermos uma boa alimentação. Será óptimo termos a possibilidade de fazer uma ligeira refeição e quente. Assim limpamos o estômago daqueles alimentos processados que fomos ingerindo, e para mim a sopa é o alimento ideal. Tem fibras, hidratos de carbono e água. Devemos evitar comer fritos e os alimentos de difícil digestão. Hidratar é muito importante. O melhor dos líquidos é a água mas uma coca-cola, preferencialmente sem gás, também ajuda pois é aquela bomba calórica e de sódio que estamos necessitados.

    André, sempre que precisares de uma ou outra dica estás à vontade. 😀

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  5. André Carvalho diz:

    Que espetáculo! obrigado pelas respostas.
    Será pedir muito que faças uma secção no teu blogue com estas dicas, mas que vás alimentando ao longo dos tempos?
    Eu uso os teus relatos para me “instruir” mas um repositório/secção dedicada, seria bastante valioso para outros que como eu estão a começar nestas andanças de muitos km.

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  6. Gilberto diz:

    Olá André,

    Segue os conselhos do Paulo, mas tens de ter cuidado com uma coisa muito importante, pois não é à toa que se costuma dizer que “o ciclista morre pelo estômago”. Não te lances em nenhuma aventura grande sem antes teres testado com é que o teu organismo reage, no meu caso, a minha alimentação foi muito semelhante à do Paulo, mas se eu tivesse comido as sopas e a salada de fruta, o meu Brevet tinha ficado por aí. Somos todos diferentes e reagimos de forma diferente às mesmas coisas.
    Tens aqui uma boa base, mas tens muito para ler, calorias gastas vs calorias ingeridas, hidratação em excesso vs falta de hidratação.
    O que é que um organismo precisa para fazer estas aventuras de longas distâncias?
    Como gerir o esforço? Eu faço essa gestão através da minha frequência cardíaca…
    Quanto ao parares em passeios de 100 Km, só se for para fazer algo (comer, tirar fotos, etc), parar para descansar pode ser a morte do ciclista, e nunca faças paragens longas, se o fizeres tens de começar tudo de novo, voltar a reativar os sistemas energéticos do corpo, e isso gasta energia. Fazer passeios longos de bicicleta tem muito a ver com saber gerir a energia.

    PS: Paulo desculpa a intromissão, um abraço.

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  7. André Carvalho diz:

    Boa contribuição Gilberto!, isto merecia um forum 🙂

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  8. Chu diz:

    This is my first time pay a visit at here and i am actually pleassant to read
    all at alone place.

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apenas pedalar ao nosso ritmo.